Título: `Europeus poderiam ter freado Bush¿
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Fonte: O Estado de São Paulo, 01/01/2006, Internacional, p. A12,13

Se eles tivessem se unido em apoio à ameaça americana de ataque ao Iraque, Saddam teria recuado antes, diz Sartori

Certas coisas ocorridas dentro do modelo dos direitos humanos, no que diz respeito aos EUA, têm pouca defesa. A guerra no Iraque e alguns aspectos a ela relacionados: o isolamento dos presos, Guantánamo, as acusações de tortura e prisões secretas...

Aqui não se pode confundir o micro com o macro. A guerra é sempre suja. Todas essas coisas aconteceram, infelizmente. A diferença é que o mundo ocidental admite essas revelações, as ditaduras, não. Isso pouco tem a ver com a noção de cultura; a cultura é um conjunto de valores e crenças, e é isso que, em minha opinião, faz da democracia ocidental o melhor sistema entre os que existiram até agora na História: nada melhor foi inventado para a proteção do indivíduo, o respeito à vida e às pessoas.

O sr. criticou a guerra, mas depois censurou os críticos da ocupação.

Fui contra a intervenção no Iraque não porque soubesse se havia ou não armas de destruição em massa, pois isso eu não sabia. Fui contra por acreditar que, em termos de custos e benefícios, os custos provavelmente seriam muito maiores, na medida em que uma guerra poderia desencadear o fanatismo islâmico. Se ainda por cima não existiam essas armas, pior. A guerra foi um erro terrível resultante da ingenuidade dos americanos, que não se deram conta de que ativavam uma mina que galvanizaria o fundamentalismo islâmico e o terrorismo. O dano foi feito e depois se argumentou: não se invade um país que estava estruturado por seu Exército para em seguida mandar os soldados para casa. Até as crianças sabem que toda essa gente sem trabalho passará à resistência. Foram cometidos muitos erros. Mas agora, com o dano já provocado, uma vez ali, argumento que não se deva piorar as coisas. Portanto, retirar-se no estilo de José Luis Rodríguez Zapatero (primeiro-ministro espanhol), abandonar o Iraque, significa aceitar a criação de um Estado terrorista com capacidade de produzir armas de extermínio em massa, sobretudo bacteriológicas. Não podemos permitir isso. A guerra foi um erro, mal feita e mal administrada, mas é preciso sair de lá sem permitir a criação de um Estado controlado por terroristas.

A guerra abriu uma crise na Europa e entre a Europa e os EUA. Entre as duas margens do Atlântico, tampouco se pode dizer que haja muita parceria, não?

Tudo vem do 11/9. Para os americanos, não entendemos quanto isso os mudou, e temo que eles tenham razão. Se o atentado terrorista tivesse destruído o Vaticano, nós também teríamos um trauma. Para eles foi isso, e não se deve subestimar o faato. Depois, o 11/9 levou ao ataque contra o Iraque - sem aquele, este não teria ocorrido -, e isto semeou a discórdia no seio da Europa e entre a Europa e os EUA. Nesta partida, todos jogaram mal. Jogou mal Bush, que acredito ser um homem de estatura mental mínima. Em cada coisa que ele põe a mão, estraga. Mas também Chirac e Schroeder deram uma de espertos diante dessa intervenção que diziam querer evitar. Na verdade, Chirac queria humilhar os EUA. Se a Europa, sobretudo Chirac - um gaullista de pouca inteligência, como acabamos descobrindo -, quisesse deter Bush, teria detido. Mas a França fez seu joguinho da magnanimidade e de sua influência no mundo árabe - e dos grandes contratos que tem por lá -, enquanto Schroeder tinha seu problema eleitoral. Bush é um dos piores líderes da História, mas teria sido possível detê-lo em vez de empurrá-lo estupidamente para a guerra. Se ele tivesse obtido autorização da ONU, Saddam Hussein, ciente do que aconteceu em 1991, teria cedido; não teria resistido à pressão de uma Europa unida no apoio aos EUA. A intervenção não faria falta. Todos foram espertinhos. É uma vergonha para todos, sobretudo para Chirac.

Onde estavam os grandes líderes ocidentais?

Há um claro problema de falta de liderança. Naquela crise, só Tony Blair esteve à altura das circunstâncias, embora também tenha se equivocado. Felizmente, ele participou da guerra, pois se tivesse deixado Bush sozinho... Blair foi valente. Seu discurso anunciando a intervenção foi extraordinário. Ele é um líder autêntico, sabe falar, tem suas idéias e as defende. Creio que Tony Blair é o único com a dimensão de líder responsável.

E o que acontece com a Itália, com Silvio Berlusconi? Quanto tempo lhe resta à frente do governo?

Bem, da Itália é melhor não falar. Como a esquerda italiana, sob a liderança de Prodi, não é um prodígio de inteligência, e como Prodi se engana quase sempre, é até possível que Berlusconi volte a vencer. Mas a esquerda é capaz de derrotá-lo. Em teoria, não há dúvida de que Berlusconi teria de sair derrotado. Prodi tem vontade, mas tem demonstrado pouca habilidade; conheço-o há 50 anos e até fomos amigos, mas... Deixe-me abrir um parêntese: tenho a sensação de que os políticos não agüentam o esforço prolongado. Conheci muitos, inteligentes e bons, que 30 anos depois estavam esgotados. Eles não agüentam. Sem dúvida, o ofício de político é, objetivamente, muito duro; o problema é que antes não havia tanta televisão e eles não tinham a mania de dar uma entrevista por dia.

Há muitas coisas que vão mal no mundo, mas o sr. é um pouco pessimista demais.

Sou um pessimista construtivo; ou seja, pragmático. O pessimismo é útil. Se alguém diz: isto não vai bem, ou isto vai acabar mal, talvez possa convencer outro a fazer algo. Se alguém é otimista e diz que "tudo é magnífico, tudo está maravilhoso, vivemos no melhor dos mundos", isso é um desastre, é incitar a não fazer nada, não mudar nada. O mundo vai mal. Mas eu já disse, há 20 anos, que vivemos numa cultura cuja complexidade é superior a nossa capacidade de entendê-la. Fomos nós que a construímos, mas as pessoas que deveriam administrar as sociedades liberal-democráticas e todos os seus problemas políticos, econômicos e sociais já não têm a capacidade necessária para entender o que está acontecendo e o que se pode fazer. Já não somos capazes de entender o mundo que criamos.