Título: `Europa sofre de ideologia suicida¿
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Fonte: O Estado de São Paulo, 01/01/2006, Internacional, p. A12,13

Crise da esquerda criou o terceiro-mundismo e agora é preciso ser terceiro-mundista para ser de esquerda, diz analista

"Tudo o que penso, digo. Já não tenho idade para ter medo de algo." Giovanni Sartori sente-se livre. Livre para dizer o que quer, ainda que irrite ou escandalize. Com 81 anos completados em maio e depois de ter escrito mais de 30 livros, dezenas de ensaios e centenas de artigos, este sábio da ciência política e da comunicação, que recebeu o Prêmio Príncipe de Astúrias de Ciências Sociais em 2005, pode opinar que George W. Bush é "o pior presidente dos EUA" ou que a posição de Jacques Chirac na crise que levou à guerra no Iraque foi "uma vergonha". "Sempre estive à margem da correção política", diz. Provocador por natureza e com humor e saúde para beber um copo de vinho ao meio-dia, Sartori - que nasceu em Florença e divide o tempo entre Itália e EUA - não pára de trabalhar: "Quando alguém pára, envelhece." Quando ocorrem coisas na Europa como os atentados de Londres ou os incêndios de carros na França, o que o preocupa mais: o fator religioso, o problema da integração dos imigrantes?

O mais grave é o que aconteceu na Inglaterra. Supunha-se que lá houvesse uma comunidade islâmica integrada, com pessoas que vêm da Comunidade Britânica, conhecem as normas e falam inglês como língua comum. Mas alguns rapazes desta comunidade, poderíamos dizer da pequena burguesia, fizeram alguns vagões do metrô de Londres voar pelos ares. E depois se soube que metade da comunidade islâmica inglesa aprovou o ocorrido...

A repercussão popular e da mídia, no entanto, foi a inversa.

Talvez Londres tenha tido menos impacto porque, ao homo videns ("homem que vê", termo cunhado por Sartori), as imagens fazem falta, e as do metrô não expressavam bem o que havia acontecido: os mortos estavam dentro, só se viam alguns destroços. As fotos de Paris, por sua vez, eram ao ar livre: os carros ardendo, as pedras. Do ponto de vista fotográfico, Paris foi mais importante. De um ponto de vista substancial, o ocorrido na Inglaterra é muito grave. Se havia um país que deveria estar preparado para absorver a comunidade islâmica - que é de maioria paquistanesa, muito melhor que outras -, era a Inglaterra. É grave porque revelou o fracasso de uma política de integração considerada a melhor possível, a mais inteligente.

E na França, o que aconteceu?

Na França, a revolta das banlieues magrebinas, destes jovens filhos de imigrantes, mas franceses, não é uma revolta islâmica. São cidadãos pouco integrados, e sua revolta tem as características das revoltas das periferias pobres. O desemprego é muito alto, os jovens se sentem marginalizados e discriminados. Há também um fator de islamismo que faz com que isso seja, em alguns casos, um círculo vicioso: além da segregação, também eles têm responsabilidade, porque rejeitam a integração em muitos aspectos. Mas, enquanto na Inglaterra há um fator que é o terrorismo protagonizado por jovens de famílias burguesas, na França aconteceu uma clássica explosão de revolta de bairros pobres, da comunidade na qual há mais desemprego e que sofre mais discriminação.

Como ocorreu em outros lugares.

Por exemplo, em Los Angeles. São explosões de periferias empobrecidas que constroem um gueto, como ocorre com muitos hispânicos. Gente freqüentemente analfabeta ou de pouquíssima cultura que chega, se fecha em pequenos ou grandes espaços, não aprende a língua e se condena à pobreza, à degradação, à violência, ao narcotráfico. Creio que o melting pot americano já não funciona.

Por quê?

Porque inventaram a doutrina do multiculturalismo, de reivindicação das raízes, mas também de criação de guetos fechados. Se as pessoas que desejam recuperar a identidade o fazem ficando isoladas da comunidade em geral, que é a do país que as acolhe, põe-se em marcha algo que funciona mal. É preciso fazer uma distinção entre multiculturalismo como situação de fato - a Suíça é multicultural, como o Canadá - e a ideologia do multiculturalismo, segundo a qual é bom reinventar ou reforçar a própria identidade e depois fechar-se em comunidades que na verdade são guetos. Combato essa ideologia; sou contra inventar ou reinventar uma identidade, reforçá-la e criar subsociedades fechadas que produzam fenômenos de marginalização e revolta. Sou contra essa ideologia. As soluções devem ser de tipo pluralista, não multicultural. O multiculturalismo não é um remédio, é uma enfermidade; é uma maneira de piorar as coisas. Mas há líderes que constroem sua carreira política sobre esta base; são eleitos, ficam famosos, aparecem na TV e depois vivem das rendas dessa ideologia.

O sr. crê que isto seja especialmente perigoso na Europa quando entra em jogo o fator religioso?

Sim, porque na Europa há cada vez mais islâmicos, em parte imigrantes clandestinos, que criam um problema de convivência muito grave. Os turcos muçulmanos que foram trabalhar na Alemanha não criaram esses problemas porque vieram de um país que tem normas democráticas há 80 anos. O problema grave é criado pelos africanos, que constituem as camadas mais analfabetas e empobrecidas do Islã. Pode-se fazer uma analogia entre essa gente pobre e a velha Europa cristã. A atual Europa cristã não é religiosa, não é fanática, como era com aqueles que acreditavam em bruxas, em milagres. A Europa cristã teve as mesmas características exibidas hoje por muitas populações muçulmanas. Depois das guerras de religião e da passagem da História, já não somos assim; mas eles vêm de países com estruturas teocráticas nas quais não impera a vontade do povo, e sim a vontade divina.

No livro `La Terra Scoppia¿ (A Terra Explode), o sr. falava da explosão demográfica africana.

O problema africano é gravíssimo. Calcula-se que haja entre 200 milhões e 300 milhões de pessoas que estariam dispostas a ir para a Europa a qualquer preço, mesmo que seja saltando grades, como aconteceu em Melilla, ou em balsas. Se tantos milhões não vão é porque não têm dinheiro para a viagem. Se tivessem, haveria centenas de milhares de pessoas tentando pular o muro de Melilla ou cruzar o Mediterrâneo. Ou seja, a única coisa que nos mantém protegidos é a extrema pobreza dessas pessoas, exploradas pelos mercadores de escravos, esses piratas que cobram US$ 2 mil ou US$ 3 mil para trazê-las. Sem dinheiro, elas não podem chegar. A Europa não pode nem deve acolher milhões de pessoas nessas condições.

Mas a Europa certamente precisa de pessoas dispostas a trabalhar, com os atuais índices de natalidade e o futuro das aposentadorias.

Este não é um argumento sólido. A população mundial aumenta em cerca de 70 milhões de pessoas por ano. A Europa, de modo muito inteligente, trata de frear essa explosão. O discurso sobre as aposentadorias pode orientar-se de outra forma, é possível aumentar a idade da aposentadoria. E há mecanismos que não funcionam: há pessoas que preferem o seguro-desemprego a trabalhar. É um sistema de incentivos equivocado, e o desemprego na Europa é de 8% ou 10%. Assim, por que não fazer os europeus trabalhar? O problema é que somos como um touro que investe: temos de nos desenvolver mais, crescer mais, tudo mais, e a única coisa que nos preocupa é quem paga as aposentadorias. Precisamos chegar a ser 9 bilhões para pagá-las? É absurdo. É melhor enfrentar o problema das aposentadorias agora, e não deixá-lo para depois; por exemplo, atrasando a aposentadoria. Em todo caso, os custos de enfrentá-lo sempre serão menores que os custos de continuar recebendo imigrantes não assimilados e não assimiláveis, que criam tensões internas fortíssimas e destroem a comunidade política.

Mas como se faz isso?

Bom, se não há lugar para mais gente e não há trabalho, temos de controlar a imigração ilegal da melhor forma possível, como fazem todos os países que têm esse problema. Todos os que chegam à margem da lei vão para as ruas; não têm nenhuma qualificação, e assim dedicam-se ao tráfico de drogas, à prostituição. Isso deteriora a situação nas cidades européias e cria problemas gravíssimos. A Igreja italiana sempre protegeu os imigrantes sem documentos, mas basta eles ocuparem uma igreja e ela os expulsa com a maior rapidez. Os conventos estão vazios. Por que não os enchem com estas pessoas? Porque uma coisa é falar, outra é fazer. Se há uma população excessiva e esse excesso de população não é assimilável e não encontra trabalho, não se pode aceitá-lo. Não entendo qual interesse os europeus poderiam ter em sua autodestruição.

O que acontece com a Europa política que o sr. critica?

A Europa padece de ideologias suicidas. Há um esquerdismo pacifista de origem parcialmente religiosa. A crise da ideologia da esquerda criou um terceiro-mundismo, uma lógica segundo a qual, para ser de esquerda, é preciso ser terceiro-mundista. Sou bastante esquerdista, mas não enxergo a relação. A esquerda sofre uma crise de identidade gravíssima. Creio que deveria adotar a causa da ecologia, abandonada pela direita, cujos interesses econômicos são tais que ela nem quer ouvir falar dessas coisas. Se a esquerda abraçasse essa causa, salvaria o planeta, teria um argumento sólido para lutar e beneficiaria também a si própria.

Como é esse terceiro-mundismo que o sr. rejeita?

É um movimento cego e suicida, com várias manifestações. Ninguém na Europa gosta da guerra ou quer guerra: tivemos guerras demais. Mas essa gente adota um pacifismo implacável que cria adversários fantoches, moinhos de vento. É um pacifismo absoluto, sem condições, que convida à guerra, à agressão. A esquerda mais ativista, em busca de nova identidade depois de ter perdido seus ídolos e referências, ficou sem ideologia e inventou a fuga para a esquerda, que é uma estupidez: é uma fuga de quem não tem idéias nem bom senso e cai no puro extremismo. Depois vem a esquerda reformista, que tenta deter isso. Mas há uma parte da esquerda ativa, bastante forte em toda a Europa, que pratica o extremismo puro e consegue seqüestrar a esquerda mais moderada. Esta outra esquerda poderia se recuperar se, entre outras coisas, se aproximasse da ecologia; mas está embebida demais na memória do próprio passado e não tem imaginação ou preparo para encarar um mundo sem as velhas ideologias mortas.

O sr. também qualificou de suicida o relativismo moral segundo o qual não se deve aplicar ou exigir códigos fixos de conduta.

Creio que a tolerância é o valor básico do pluralismo. Mas o relativismo é um comportamento suicida: se tudo equivale, nada vale. Os valores desaparecem. Mas sou antiquado, há valores que me agradam. O relativismo é uma doutrina que se pretende moderna e diz que todos os valores são iguais. É suicida porque assim não se pode criticar nada, tudo é bom, "a Al-Qaeda tem seus valores e estes devem ser respeitados". Creio que cada um deve ter seus valores e defendê-los. A tolerância nos diz que respeitemos os valores dos outros. Nós os respeitamos, mas isso não quer dizer que os aceitemos. Aceitaremos se chegarmos à conclusão de que são superiores. Essa história de que não se deve ofender ninguém, não se deve falar em choque de culturas... Se isso existe, existe; se não, muito bem. Não sei ao certo o que há de terrível em afirmar isso. Será preciso esconder a realidade? Se há duas religiões monoteístas, uma das quais se reanimou com a ajuda da TV, e há uma civilização teocrática, ideologicamente mobilizada e invasiva - as religiões monoteístas dizem que seu Deus é o único verdadeiro e o que fazem é a guerra santa, como fez o cristianismo -, então se cria um problema de defesa para os outros, que devem enfrentar o choque ou render-se.

Mas faltará fazer algum esforço para chegar a acordos, para compreender os outros.

Quanto a mim, entendo os outros perfeitamente. Li o Alcorão, li muita literatura, não sou bobo. Entendo-os maravilhosamente, e por isso digo que não quero ser assim. Isto é ofensivo? Sou um estudioso e, como tal, procuro entender o mundo. E procuro salvar a civilização na qual acredito, que é a ocidental, que tem sido melhor que as outras dos pontos de vista ético e político. Na sociedade liberal-democrática, quase todos podemos viver; não vamos para a cadeia sem um devido processo legal, etc. Isso é o que primou no Ocidente, o que conseguiu criar uma cidade política onde se pode viver, bastante livre, com ampla margem de segurança ao cidadão. É claro que tem inconvenientes, mas conta com tudo isso de que falamos.

Para esta `cidade política¿ seria conveniente, em seu próprio interesse, ter menos inimigos.

O inimigo se cria sozinho, não é criado pelo Ocidente. O que se pode fazer? Uma sociedade liberal-democrática já faz bastante: aceita os imigrantes e os integra a sua organização social. Mas, como dizia Ronald Reagan, é preciso um par para dançar o tango. Se um não quer dançar, não há nada a fazer. Um exemplo: nem sequer somos capazes de definir o terrorismo. Por quê? Porque os países islâmicos não querem aceitar que os palestinos que matam italianos sejam definidos como terroristas. O que devemos fazer? Dizer que o terrorismo não existe? Não, o terrorismo existe e, se não conseguirmos achar uma definição jurídica comum com o mundo islâmico, teremos de manter a nossa. Claro que queremos paz. Quem quer a guerra hoje em dia? Mas isso não quer dizer que devamos nos render; temos de nos defender.