Título: Tese da paz democrática pode levar a guerra regional
Autor: Niall Ferguson
Fonte: O Estado de São Paulo, 01/01/2006, Internacional, p. A10

Semanas atrás, reuni-me com duas ex-alunas minhas, uma de Cambridge e a outra de Oxford. Uma passou a maior parte dos últimos três anos a serviço de Sua Majestade no sul do Iraque. A outra está instalada em Jerusalém, trabalhando para intermediar uma paz duradoura entre israelenses e palestinos. Basra e Gaza certamente não são os lugares onde eu achava que elas terminariam. Não é, aliás, o fato de que sejam produto de Oxbridge - ou de que ambas sejam mulheres - que me dá esperanças sobre o futuro do Oriente Médio. É o fato de que elas são historiadoras. Afinal, as forças que hoje infernizam o Oriente Médio são fundamentalmente as mesmas que dilaceraram a Europa no século passado.

Há um século, a Europa era o continente por onde passavam as maiores fissuras geopolíticas do mundo. Como o Oriente Médio de hoje, a Europa tinha o encanto dos recursos naturais (carvão e ferro, não petróleo). Como o Oriente Médio de hoje, tinha uma população em rápida expansão profundamente dividida por linhas étnicas (embora a maioria fosse cristã, não muçulmana). E, como no Oriente Médio de hoje, era ali que as placas tectônicas de impérios se encontravam.

Muitos comentaristas superficiais gostam de atribuir os problemas do Oriente Médio de hoje às manobras imperiais britânicas e francesas para forjar dependências nas províncias perdidas do Império Otomano - como se diplomatas europeus maliciosos de algum modo tivessem inventado as antigas cisões entre xiitas e sunitas, ou encorajado deliberadamente os colonos judeus a se assentar na Palestina.

Na verdade, a ordem pós-1918 foi notavelmente bem-sucedida em impedir que o nacionalismo árabe se tornasse uma fonte de sustentação para as potências do Eixo durante a 2ª Guerra Mundial.

O predomínio americano subseqüente na região (de meados dos anos 1940 em diante) se baseou numa combinação improvável de relações especiais com wahabismo (Arábia Saudita) e sionismo (Israel).

Embora tenham conseguido controlar as ambições soviéticas na região, os Estados Unidos tiveram dificuldades em seus esforços para manter a paz.

Depois da revolução iraniana, os Estados Unidos jogaram o jogo do equilíbrio de poder, tratando Saddam Hussein como um contrapeso útil. Mas a insatisfação com essa estratégia nebulosa levou os chamados neoconservadores a idealizar uma estratégia nova e radical. A região poderia ser estabilizada (e a segurança de Israel fortalecida) por uma revolução democrática vigorosa, começando pelo Iraque.

Essa era, desde o começo, uma estratégia baseada mais em ciência política do que na história. A teoria da "paz democrática" afirma que duas democracias são sempre e em toda parte menos propensas a ir à guerra uma contra a outra do que duas ditaduras, ou uma democracia e uma ditadura. Os neoconservadores inferiram daí que um Oriente Médio mais democrático seria um Oriente Médio mais pacífico.

As eleições realizadas dia 15 no Iraque são interpretadas em Washington como evidência de que a abordagem neoconservadora ainda pode funcionar. Evidentemente, o alto comparecimento registrado - em especial nas áreas sunitas - foi o melhor presente de fim de ano que o acuado presidente George W. Bush poderia desejar.

E sondagens de opinião recentes também são reanimadoras (Harold Pinter, tome nota): 80% da população em províncias de maioria curda e 58% em províncias de predominância xiita acham que os Estados Unidos agiram "certo ao invadir o Iraque"; 70% de todos os iraquianos aprovam a nova Constituição. Sim, dois terços dos iraquianos querem que os soldados americanos vão embora. Mas a maioria dos americanos quer a mesma coisa.

A história, porém, oferece uma advertência salutar. Mesmo um sucesso completo no Iraque poderia deixar uma quantidade pavorosa de não-democracias na porta ao lado - em especial, Síria, Arábia Saudita e Irã, que é agora a principal ameaça à estabilidade na região. De qualquer modo, o que a teoria da paz democrática não nos conta é o número de países que mergulharam na guerra civil depois da democratização.

Chamem esse cenário de desfecho "ganha-e-perde". Os Estados Unidos ganham no sentido de que o Iraque realizou com sucesso duas eleições e um referendo. Mas perdem porque a democracia expõe as diferenças profundas entre xiitas, curdos e sunitas.

A situação não termina em paz democrática, mas em guerra democrática, se os curdos pegarem em armas para lutar pela independência e os sunitas fizerem o mesmo para tentar voltar a impor seu domínio.

Basta olhar de novo os números. Nas áreas sunitas, apenas 16% consideram que os Estados Unidos agiram certo ao invadir o Iraque.

Os sunitas representam cerca de 20% da população iraquiana. E uma pesquisa nacional recente sugere que seus concidadãos iraquianos esperam que eles recebam apenas 5% a 10% da receita de petróleo do país. Não é difícil perceber que esta será uma das principais questões quando o novo Parlamento se reunir.

O Iraque poderá facilmente trilhar o caminho do Líbano no fim dos anos 1970, só que em maior escala e de maneira mais sangrenta. E uma guerra dessas poderia facilmente alcançar as proporções de um conflito regional.

Se a história da Europa do século 20 serve de exemplo, todos os ingredientes estão dados para a maior conflagração da história do Oriente Médio. A única boa nova é que a primeira coisa que irá para os ares será a teoria da paz democrática.