Título: Novo alerta no Mercosul
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Fonte: O Estado de São Paulo, 13/01/2006, Notas e Informações, p. A3

O Mercosul não pode ser apenas um empreendimento comercial, têm dito os chefes da diplomacia brasileira, e essa avaliação é correta. Mas, em termos práticos, o Mercosul tem de ser pelo menos um empreendimento comercial bem-sucedido e ainda está longe disso. Enquanto ministros uruguaios falam em negociar um acordo com os Estados Unidos, chanceleres do Brasil e da Argentina, maiores economias do bloco, discutem limitações para o comércio de veículos e autopeças e salvaguardas aplicáveis entre os sócios do bloco. Esse quadro seria mais que suficiente para mostrar a gravidade dos problemas, se os governos das duas maiores economias da região estivessem dispostos a reconhecer os fatos. Mas pelo menos um desses governos, o brasileiro, continua a mostrar-se mais atraído pelo jogo do faz-de-conta.

Os ministros de Relações Exteriores do Brasil, Celso Amorim, e da Argentina, Jorge Taiana, reuniram-se em Brasília para preparar a visita do presidente Néstor Kirchner, marcada para o dia 18. Os chanceleres cuidaram principalmente de dois temas incompatíveis com a ambição de aperfeiçoamento do Mercosul.

Um deles é o futuro do acordo automotivo. Desde 1º de janeiro, o comércio de veículos e peças deveria ser livre entre os dois países, mas o governo argentino insistiu na prorrogação do intercâmbio regulado e as autoridades brasileiras concordaram. O outro assunto é adoção de salvaguardas comerciais - um tipo de barreira defensiva - no interior do bloco.

O acordo automotivo já passou por duas etapas. Novas normas foram adotadas, na segunda, para atender a pressões do governo e do empresariado argentino. No ano passado, as autoridades argentinas anunciaram a intenção de prorrogar o comércio regulado e com normas de controle ainda mais estritas, por fábrica e não mais pelo total das vendas de cada parceiro. O assunto continua em discussão, mas o governo brasileiro já cedeu no essencial e concordou em travar o progresso institucional do Mercosul.

A imposição de salvaguardas também será um atraso. Regras da Organização Mundial do Comércio (OMC) permitem o uso desse mecanismo, em certas condições. Não tem sentido, porém, num acordo de integração regional, mecanismos de restrição comercial mais limitadores que os da OMC. Mas é essa a pretensão enunciada pelo governo argentino até agora.

O governo brasileiro comete um erro grave quando acredita ser necessário ceder a exigências como essas para preservar e até fortalecer o bloco. Os demais sócios, Paraguai e Uruguai, têm razão quando reclamam da transformação do Mercosul num campo de disputa em torno dos interesses dos sócios maiores.

O ministro Celso Amorim definiu como um sinal de alerta as declarações de ministros uruguaios sobre um possível acordo comercial com os Estados Unidos. Mas, ao agir como se estivesse acuado, de um lado pelo Uruguai e, de outro, pela Argentina, interpretou erradamente a mensagem.

¿Se não procurarmos melhorar as relações com nosso principal cliente, com quem vamos fazê-lo¿, argumentou na segunda-feira o ministro de Indústria do Uruguai, Jorge Lepra.

Os Estados Unidos são o melhor cliente. Em 2004, o Uruguai exportou mercadorias no valor de US$ 576,9 milhões para o mercado americano. O Brasil, segundo maior comprador, pagou US$ 483,8 milhões por produtos uruguaios. É um grande parceiro, mas o Uruguai teve superávit de US$ 356,6 milhões com os Estados Unidos, naquele ano, e déficit de US$ 192,7 milhões com o Brasil.

Segundo o ministro Celso Amorim, as estatais brasileiras poderiam usar seu poder de compra para ajudar os sócios menores. Mas essa obviamente não é uma solução. Paraguai e Uruguai não pedem esse tipo de ajuda. Pedem mais oportunidades comerciais e mais integração econômica.

Seria essa, também, a solução para os impasses com a Argentina, mas o governo brasileiro se mostra incapaz de enfrentar o problema com um mínimo de objetividade. A idéia de articulação das cadeias produtivas permanece vaga. Pode ser uma solução eficiente - ou parte da solução -, mas é preciso estudá-la com espírito prático. Tem faltado esse atributo à diplomacia econômica brasileira. Tem sobrado a tolerância a imposições destruidoras do Mercosul. Os uruguaios têm razão, quando pensam em cuidar de sua vida.