Título: O indivíduo venceu o cidadão?
Autor: Gilberto Dupas
Fonte: O Estado de São Paulo, 07/01/2006, Espaço Aberto, p. A2

O indivíduo é o inimigo número um do cidadão. Tocqueville dizia que o cidadão procura seu próprio bem-estar pelo bem-estar de sua cidade, enquanto o indivíduo não acredita na causa comum ou na sociedade justa; para ele, bem comum é cada um se virar ao seu modo. Para o indivíduo, a única função útil do poder público é garantir que cada um possa seguir seu próprio caminho em paz, protegido em sua segurança física e de suas propriedades. Mas para isso é preciso que ele e as outras pessoas tenham trabalho, que todos os bandidos estejam nas prisões e as ruas, livres de raptores, ladrões, terroristas e pervertidos. Obviamente, o poder público está cada vez mais longe de poder cumprir essa função. Nas últimas décadas inventamos uma espécie de versão privatizada da modernidade, em que tudo é responsabilidade do indivíduo. Praticamente não há mais agenda coletiva; no máximo, programas assistencialistas, que dão um pouco de recursos públicos a famílias com fome. A regra é cada um por si, lembra-nos Zygmund Bauman. Dependendo do dinheiro que cada um tem, só sobraram os divãs de análise, as camas de motel ou os sacos de dormir. Visões comunitárias já não definem as identidades. Estamos hoje aparentemente muito mais predispostos à crítica, mais briguentos e intransigentes. Mas nossa crítica não tem dentes, não produz efeitos sistêmicos nas nossas opções de políticas e de vida. Leo Strauss lembra que a aparente liberdade sem precedentes que nossa sociedade oferece a seus membros veio acompanhada de uma impotência também sem precedentes. A crítica que se fazia às fábricas fordistas é que mantinham os trabalhadores como robôs obedientes, as identidades e os laços sociais deixados nos armários de aço da entrada. Hoje se anseia por um trabalho com carteira assinada e só se consegue algum no informal. Antes o Grande Irmão nunca dormia, controlava a todos. Hoje, sentimos saudades dos empregos que oferecia. Movemo-nos com mais liberdade. Mas, para onde, se o horizonte da gratificação, a linha de chegada em que vem o descanso, se remove mais rápido que qualquer corredor? Tudo foi desregulado e privatizado, cedido à coragem e a energias individuais. E quem não as tem o suficiente?

O conceito de sociedade justa, direito do cidadão, virou "direitos humanos", ou seja, direito do indivíduo de eleger seus próprios modelos de felicidade e os estilos de vida mais convenientes. O ônus pesado dessa "emancipação" recai sobre as camadas médias e baixas. "Não há mais salvação pela sociedade. Não existe 'a sociedade'", dizia Margaret Thatcher. Não olhe acima nem abaixo, olhe dentro de si, onde se supõe que residam astúcia, vontade e poder, ferramentas de que necessitarás para progredir na vida. Acrescente-se "com a ajuda de Deus" e temos algo como a pregação das igrejas evangélicas.

Homens e mulheres não têm mais a quem culpar por seus fracassos e frustrações; e certamente não encontrarão consolo adequado nos seus aparelhos eletrônicos ou telefones celulares. Se não conseguem trabalho, é porque não aprenderam as técnicas para passar nas entrevistas; ou são relapsos; ou não sabem fazer amigos e influenciar pessoas; ou não souberam "inventar" uma atividade informal. Em suma, a liberdade chegou quando não mais importa. O problema, como vimos, é que o indivíduo é inimigo do cidadão; e a verdadeira política só é viável a partir da idéia de cidadania. Quando os indivíduos se imaginam únicos ocupantes do espaço público, acabou o bem comum; portanto, acabou a política. O público se torna escravizado pelo privado. O interesse público fica limitado à curiosidade pela vida privada das figuras públicas. Se em meio aos assuntos privados dos políticos aparece a perversão, a falcatrua, então é uma festa. A política fica resumida a crônicas de Nelson Rodrigues, e nós comemoramos com o refrão: "São uns salafrários, todos são iguais." Aliás, foi fundamentalmente assim que se ocupou - e se estragou - o espaço político brasileiro no ano que passou.

Estamos criando todas as condições para o esvaziamento do papel das instituições democráticas, já duramente atingidas pela privatização da esfera pública. Não pense que a eletrônica e a Internet têm alguma chance de minorar esse problema. As realidades virtuais não substituem as crenças reais; nelas se entra com muita facilidade para, logo em seguida, perceber solidão e abandono. Bauman diz que o sentimento do "nós" não é oferecido a quem surfa na rede. E Clifford Stoll fala em indivíduos absortos em perseguir e capturar ofertas piscantes do tipo "entre já", perdendo a capacidade de estabelecer interações espontâneas com pessoas reais.

Nas redes virtuais há apenas ilusão de intimidade e simulacro de comunidade. Os espaços públicos estão coalhados de pessoas zanzando com telefones celulares, falando sozinhas em voz alta, cegas às outras ao seu redor. A reflexão está em extinção. Usamos todo o nosso tempo para obsessivamente verificar a caixa de mensagens em busca de alguma evidência de que, em algum lugar do mundo, alguém esteja querendo falar conosco. E, sob pretexto fútil de nos defendermos dos ataques externos, colocamos películas escuras nos vidros dos carros para podermos praticar nossas pequenas transgressões sem sermos reconhecidos. Profunda solidão.

Que o ano novo nos enseje uma breve reflexão sobre a sociedade que estamos construindo. Talvez, como pequeno gesto simbólico de reação, decidamos começar clareando nossos vidros e voltando a nos olhar face na face, como cidadãos - pelo menos no trânsito. Já não seria um bom começo?