Título: Livro revela mulher obstinada e desconfiada
Autor: Roberto Lameirinhas
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/01/2006, Internacional, p. A10

Os horrores da ditadura de Augusto Pinochet e as traições forjaram a complexa personalidade de Michelle Bachelet. Os jornalistas Andréa Insunza e Javier Ortega abandonaram o trabalho diário no jornal chileno La Tercera em março de 2004 para dedicarem-se a pesquisar a vida da então pouco conhecida ministra da Defesa. Após um ano de pesquisas patrocinadas pela Universidade Diego Portales, lançaram Bachelet, la Historia No Oficial, considerada a sua mais completa biografia. ¿Num primeiro momento, nos pareceu que a trajetória de Bachelet sintetizava os últimos 40 anos da história do Chile¿, explica Ortega, ao justificar a escolha do tema da pesquisa. ¿Bachelet sentiu na própria carne todos os efeitos da política desse período.¿

Os jornalistas apuraram que a personalidade de Bachelet, nascida em 1951, começou a ser formada no universo dos quartéis. Seu pai, Alberto, era brigadeiro da Força Aérea. No fim dos anos 60, começo dos 70, Bachelet ingressou na Juventude Socialista e começou seu curso de medicina na Universidade do Chile. Nessa época, o pai era considerado um dos oficiais mais leais ao presidente, Salvador Allende.

O golpe que derrubou Allende em 11 de setembro de 1973 marcaria sua vida para sempre. No mesmo dia, toda a família foi presa depois da recusa de seu pai em colaborar com a nova ordem política. Alberto Bachelet, Michelle e a mãe dela, a arqueóloga Angela Jeria, foram submetidos a intensas sessões de tortura nos porões da repressão.

¿Um requinte de perversidade nesta história era que os homens escolhidos para torturar Alberto e sua família foram seus ex-subordinados¿, diz Andréa Insunza. ¿Michelle Bachelet sentiu-se traída, não só pelos suboficiais, mas por sua própria pátria.¿ O pai não sairia da Prisão Pública de Santiago. Em março de 1974, aos 51 anos, morreu de ataque cardíaco em sua cela. Os dois biógrafos rejeitam a versão de que Bachelet foi violentada sexualmente por seus torturadores.

¿Ela foi torturada e apanhou muito, mas até onde se sabe não foi estuprada¿, diz Andréa. ¿O tratamento dado à mãe dela, fechada em uma caixa por vários dias, foi mais cruel do que o dela.¿ Após a morte de Alberto, Bachelet e a mãe foram autorizadas a exilar-se.

Primeiro para a Austrália, depois para a Alemanha Oriental. No exílio, ela continuava a militar no Partido Socialista chileno, então proscrito no Chile. Namorava com outro militante do partido, Jayme López. ¿Foi um dos grandes amores de sua vida, e eles se encontraram algumas vezes no exterior¿, afirma Ortega.

Ambos conheciam detalhes da atuação clandestina do partido no Chile. Ainda no exílio, Bachelet descobriu que López tinha sido cooptado pela Direção Nacional de Inteligência (Dina), a temida política de Pinochet, e entregado vários de seus camaradas. Mais uma vez, Bachelet se sentia traída.

A outrora garota brilhante e extrovertida, fã do cantor brasileiro Roberto Carlos ¿ uma paixão que a levou a estudar português no Centro de Estudos Brasileiros, em Santiago ¿, se tornava cada vez mais introspectiva e calada. ¿O aprofundamento nos estudos de temas militares e de defesa foi, na verdade, uma busca de entender a si mesma e aos fatos que marcavam sua vida¿, diz Andréa.

¿Apesar do trato afável e cordial com todos, Bachelet é incapaz de confiar totalmente em qualquer que seja, com exceção de sua mãe ¿ com quem mantém até hoje uma relação muito estreita¿, prossegue a jornalista.

Michele Bachelet também é extremamente reservada em relação aos assuntos de sua vida privada. A uma brincadeira de um repórter durante a campanha, que lhe perguntou quem ocuparia o lugar normalmente reservado para a primeira-dama, Bachelet respondeu irritada: ¿Você não faria essa pergunta se eu fosse um homem!¿

Bachelet voltou ao Chile em 1979, ainda atuando na clandestinidade. Nunca foi um quadro destacado do PS. ¿Ela participava do círculo dos socialistas que sofreram mais durante o exílio, que foram para os países da cortina de ferro, e não dos que se exilaram na Europa Ocidental ou nos EUA, que ganharam visibilidade na luta contra a ditadura e se tornariam depois os principais dirigentes da Concertação¿, explica Ortega.

Depois do fim da ditadura, candidatou-se à vereadora pela municipalidade de Las Condes, em Santiago, mas obteve apenas 3% dos votos.

¿Seu nome começou a surgir entre os candidatos para a presidência naturalmente, com o aval das pesquisas, depois que ela deixou o Ministério da Saúde (para o qual tinha sido designada por Ricardo Lagos) para o da Defesa.¿

Na primeira reunião da nova ministra com os chefes militares, ela apresentou sua credenciais: ¿Sou mulher, agnóstica, separada, socialista e vítima da ditadura. Mas vamos nos dar bem.¿ Em sua gestão, deu início à modernização das Forças Armadas chilenas e ao processo de desvinculação dos quartéis da influência de Pinochet.