Título: Kirchner testa diplomacia de Lula
Autor: Denise Chrispim Marin
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/01/2006, Economia & Negócios, p. B3

BRASÍLIA - Em sua primeira visita de Estado ao Brasil, na quarta-feira, o presidente da Argentina, Néstor Kirchner, enfrentará um novo teste diplomático. Em Brasília, terá de passar pelo desafio de controlar seu humor intempestivo e evitar que pendências comerciais contaminem o novo clima de estreitamento das relações entre os dois países, inaugurado no encontro de Puerto Iguazú, em novembro. A expectativa da diplomacia de ambos os países é que Kirchner e o presidente Lula possam lançar um ciclo virtuoso, concentrado na melhoria da competitividade e na construção da política industrial comum do Mercosul.

O potencial das questões comerciais de azedar essas intenções é elevadíssimo. Primeiro, por conta do déficit argentino de US$ 3,677 bilhões no comércio com o Brasil em 2005, ante US$ 1,147 bilhão em 2004. Segundo, pelos desacertos nas negociações do novo acordo automotivo e a Cláusula de Adaptação Competitiva (eufemismo para salvaguardas comerciais). Por fim, pelas deficiências do Mercosul, que deixou o Uruguai à beira de negociar um acordo de livre comércio com os Estados Unidos.

A visita de Kirchner se dá depois de uma fase de turbulências nas relações com Lula. O presidente argentino torceu o nariz para várias iniciativas do Brasil no plano internacional: foi malcriado ao abandonar, logo no início, a Cúpula da América do Sul, em Brasília, e a dos Países Árabes, em maio, e a reunião dos líderes da Comunidade Sul-Americana de Nações, em setembro.

A Argentina ainda votou contra o Brasil na escolha do diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC) e do presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Também se mantém em aberta campanha contra o interesse maior da diplomacia brasileira: o assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas.

No início de maio, o presidente argentino teria ironizado a ganância de Brasília por todo e qualquer posto de comando em foros e organismos internacionais. ¿Até queriam ter um papa brasileiro!¿, teria dito a assessores.

O fato é que os dois países estão intimamente atrelados, seja pelos investimentos recíprocos, pelos interesses comerciais ou pela lógica produtiva. A decisão do Brasil de antecipar o pagamento da dívida com o Fundo Monetário Internacional (FMI) motivou Buenos Aires a fazer o mesmo. Ambos enfrentam, em posições contrárias, o mesmo dilema do crescimento econômico com o controle da inflação ¿ o Brasil com a economia crescendo pouco e a Argentina, com os preços prestes a disparar.

Mas, se o Brasil ainda atrai investimentos estrangeiros, a Argentina se vê descartada nos planos das grandes companhias globais. Daí a idéia defendida pelo Itamaraty de superar a atual concentração do Mercosul nas relações comerciais e saltar para um plano mais ambicioso, de criar uma política industrial comum, em especial nos dois países.

A proposta foi debatida na reunião de negociadores argentinos e brasileiros no Itamaraty, na última quarta-feira, quando o chanceler Jorge Taiana encontrou seu colega Celso Amorim. Isso envolveria a definição de políticas de atração de investimento, de programas de inovação tecnológica e de desenvolvimento de regiões mais carentes de setores produtivos que valeriam para o bloco.

A rigor, seria algo como a extensão dos princípios da Política Industrial e de Estímulo às Exportações, criada pelo governo brasileiro em 2004, para todo o Mercosul, conforme explicou uma fonte do Itamaraty.