Título: Pacto de impunidade
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Fonte: O Estado de São Paulo, 08/01/2006, Notas e Informações, p. A3

Incumbido de noticiar as atividades de uma câmara legislativa, um repórter iniciante ouviu ali, já no primeiro dia, um alerta que entraria para o folclore do jornalismo político. "Tem de tudo nessa casa, meu filho", disse-lhe um parlamentar, antes de descrever no que consistia esse tudo, como se recitasse um resumo do Código Penal. "Só não tem uma coisa: bobos." É impossível subestimar, de fato, a esperteza dos políticos, muito menos a sua capacidade de trabalho - quando em defesa de seus interesses, bem entendido, e em silêncio, de preferência, numa homenagem implícita ao senso ético do eleitor. Não será descabido dizer que aqueles invejáveis atributos costumam ser tão mais bem exercidos quanto mais escusos os objetivos a cujo serviço são acionados.

O que se vê e se ouve nos corredores do Congresso - para usar as palavras do deputado peemedebista Osmar Serraglio, relator da CPI dos Correios - é apenas a mais recente expressão dessa astúcia que parece se transmitir na política de geração em geração, imune até mesmo ao formidável descrédito que o ofício faz por merecer da sociedade. Agora, os que podem ser tudo menos bobos estão voltados para reduzir a uma encenação inconseqüente os processos em curso no Conselho de Ética da Câmara contra os acusados de servir-se do valerioduto construído pelo PT para facilitar, em última análise, a vida do presidente Lula - o que não tinha "condições de saber" da lambança desatada.

Dos 19 indiciados pela investigação parlamentar, 11 ainda correm o risco de punição (4 renunciaram, 2 foram cassados e 2 absolvidos, um deles o petebista mineiro Romeu Queiroz, apesar das evidências gritantes de seu envolvimento com o mensalão). Daqueles 11, 5 são petistas, cujos processos tardaram a ser abertos em razão de liminar que obtiveram no Supremo Tribunal Federal. Por isso, anunciou o presidente do Conselho, Ricardo Izar, deverão ficar para o fim da fila das votações - exatamente o que pretendiam ao recorrer à Justiça. Tempo é o capital mais precioso que podem acumular para safar-se de perder os mandatos e ter suspensos os seus direitos políticos. Mas essa é só uma parte da esperteza.

A outra, com o mesmo fito, está no corpo mole da maioria dos relatores dos processos - a ponto de o deputado Izar anunciar que dará um "ultimato" a todos eles. Um caso revelador é o do pefelista mineiro Edmar Moreira, relator do processo contra o petista José Mentor - aquele mesmo da farsesca CPI do Banestado. Mentor ficou com a cabeça a prêmio porque se verificou que o seu escritório de advocacia recebeu R$ 120 mil de uma empresa do publicitário Marcos Valério. (Mentor alega, inconvincentemente, que o escritório fez um serviço para um dos sócios de Valério.) Numa atitude eloqüente, Moreira avisou que só cuidará do processo depois do período de convocação extraordinária do Congresso que vai até 15 de fevereiro.

É praticamente certo que nenhum relatório será votado em plenário antes disso - e, se for, maiores serão em princípio as chances dos réus, porque são necessários pelo menos 257 votos para uma cassação (metade mais um dos membros da Câmara). Eis, a julgar pelo retrospecto, um número difícil de reunir nessas verdadeiras férias legislativas duplamente remuneradas. Já no Conselho de Ética, dos quatro pareceres a serem apresentados na próxima semana, apenas um se refere a um parlamentar do PT, Professor Luizinho. Por intermédio de um assessor, ele sacou R$ 20 mil das contas de Valério. Pelo estranho critério que mede a quebra de decoro parlamentar pelos valores indecorosamente recebidos - como se isso mudasse a natureza da ofensa -, se prevê que Luizinho escapará com uma mera advertência.

A se confirmar essa hipótese, dos dois petistas seguintes na fila, João Magno (R$ 350 mil) e João Paulo Cunha, ex-presidente da Câmara (R$ 50 mil), apenas o primeiro teria motivos de insônia. E ainda assim há o precedente do citado Romeu Queiroz. O Conselho de Ética pediu e a Câmara dos Deputados negou a sua cassação. Foi uma "atitude corporativista", diz ainda hoje o presidente da CPI dos Correios, Delcídio Amaral, do PT. Ou, a julgar pelo relator da Comissão, Osmar Serraglio, o "primeiro alerta" da existência do acordão que vem denunciando, a partir do que vê e ouve nos corredores. É sintomático que o líder petista na Câmara, Henrique Fontana, queira que Serraglio se retrate.