Título: 2006 - ano IV de uma nova era?
Autor: Pedro Malan
Fonte: O Estado de São Paulo, 08/01/2006, Espaço Aberto, p. A2

"O que é legítimo e razoável esperar do governo Lula é que possa entregar a seu sucessor um País melhor do que aquele que recebeu. Como fez o governo FHC." Esta é a frase que conclui meu primeiro artigo neste espaço, já lá se vão quase três anos. Continuo com a mesma visão, agora reforçada por aquilo que espero possam ser lições da crise que afeta o PT e o governo Lula desde meados de 2005. Uma destas lições parece ser o "abalo da crença de que existem pessoas, partidos e ideologias capazes de mudar magicamente o Brasil" (DaMatta). Em outras palavras, pode haver algo de positivo em ilusões perdidas, se o resultado for a busca mais realista e informada de novos avanços, e não o desencanto, o cinismo ou a aceitação de novas ilusões e seus mercadores.

Nestes nove meses que faltam para as eleições, o presidente Lula estará se apresentando ao eleitorado como merecedor de quatro anos adicionais. No clima em que estamos seria, talvez, ingenuidade esperar que o governo atual reconhecesse de público que se beneficiou - e muito, ao longo dos três últimos anos - de um contexto internacional extraordinariamente favorável, como não se via há décadas, tanto em termos de comércio como de expansão de liquidez internacional.

Seria certamente ingenuidade maior ainda esperar que o governo atual reconhecesse de público que a extraordinária redução da vulnerabilidade externa e o expressivo desempenho do balanço de pagamentos do País nos últimos anos (apesar de uma apreciação do câmbio sem paralelo na história recente, com o câmbio nominal hoje equivalente ao que era quatro anos atrás) só foram possíveis pela situação internacional, pela responsabilidade macroeconômica e por uma herança - bendita - de transformações estruturais e avanços institucionais alcançados pela sociedade brasileira na vigência de administrações anteriores (abertura da economia a importações, privatizações, investimentos diretos estrangeiros, derrota da hiperinflação, renegociação prévia da dívida externa, modernização fiscal, saneamento do sistema financeiro, investimentos em educação e saúde, entre outros).

O ministro Palocci e sua equipe - à diferença de muitos no governo e no PT - perceberam estes fatos muito claramente desde o início do governo atual, granjeando respeito e credibilidade ao manter o compromisso com as responsabilidades fiscal e monetária, sempre passíveis de aperfeiçoamento e sempre sujeitas a debates.

Mas o que importa agora é que nós, brasileiros, olhemos adiante. JK e FHC, por exemplo, não ficaram se lamentando sobre pretensos "erros" por outros cometidos ao longo dos últimos x anos anteriores a 2003 (x podendo chegar a 500 anos). Não deveria ser ingenuidade esperar que o Brasil pudesse discutir o que fazer nos próximos anos, em vez de - como parece ser a estratégia político-eleitoral do atual governo - concentrar-se no passado, como se o eleitor estivesse fundamentalmente interessado em olhar o espelho retrovisor, e não a estrada à frente. Principalmente quando há muitos países que conosco competem - e estão avançando mais rápido que nós.

Os europeus, por exemplo, estão discutindo hoje, a sério, as razões do seu muito mais baixo crescimento relativamente ao crescimento dos EUA e da Ásia. No centro do debate não está a taxa de juros ou a taxa de câmbio, mas a necessidade de maior flexibilidade, capacidade de adaptação, inovação tecnológica e investimentos, que estariam a exigir, em muitos dos países europeus, a modernização de suas legislações trabalhistas e previdenciárias, sem as quais a Europa teria dificuldade de crescer mais rapidamente de forma sustentada, de competir internacionalmente e mesmo de consolidar seu processo de integração econômica.

Relatório recente, Agenda para uma Europa em Expansão, chama a atenção, entre outras coisas, para uma mudança estrutural da maior importância na economia mundial - e para a rapidez com que vem tendo lugar. Em 1983, os países em desenvolvimento representavam menos de 20% do total das importações de produtos manufaturados dos países desenvolvidos. Em 2003, este porcentual chegou a 47% (e certamente aumentou desde então). A maior parte deste fenomenal aumento veio da Ásia (de 15% em 1983 para 35% em 2003), com a China passando de 2% para 17% entre 1983 e 2003. A América Latina, em seu conjunto, passou de 3% para 8% no período.

Dentre os dez maiores exportadores do mundo, nada menos que seis são hoje "países" em desenvolvimento (China, Hong Kong, Coréia, México, Taiwan e Cingapura). Estes mesmos seis também estão entre os dez maiores importadores, mostrando que comércio é uma via de mão dupla e que a parte mais significativa do mundo em desenvolvimento (que hoje representa mais de 48% do PIB mundial na base do conceito de paridade do poder de compra) é constituída por países que não são apenas grandes produtores e exportadores, mas também grandes consumidores e importadores.

As oportunidades e os desafios postos por estas mudanças estruturais, e as respostas apropriadas a elas em termos de políticas econômicas e mudanças institucionais e legislativas, estão no centro de debate sobre o baixo crescimento da Europa, como deveriam estar no centro do nosso debate.

Trabalho recente, A Europa sem Ilusões nota que a vitória do não nos referendos realizados há pouco na França e na Holanda foi, acima de tudo, uma reação daqueles com receio do desemprego, da reforma trabalhista, da globalização, de privatizações, da competição e de mudanças no "modelo social europeu". Este tipo de insatisfação é o principal problema político para os países europeus hoje, porque é uma insatisfação voltada tanto contra o precário crescimento econômico quanto contra as reformas que poderiam melhorá-lo.

Qualquer semelhança pode ser mera coincidência, mas são questões de médio e longo prazo como estas que o Brasil terá, necessariamente, de enfrentar a partir de 2007, se quisermos aumentar, de forma sustentada, nossas taxas de crescimento, emprego e renda.