Título: Procura-se um norte
Autor: Gaudêncio Torquato
Fonte: O Estado de São Paulo, 08/01/2006, Espaço Aberto, p. A2

O discurso político-eleitoral começa o ano com dinheiro demais e idéias de menos. O volumoso pacote arrumado às pressas para pavimentar a caminhada de Lula rumo à reeleição, no montante de R$ 28 bilhões, como na teoria dos jogos, tem 50% de chances de dar certo. Encherá palanques nas regiões das obras, reforçará o verbo com a grandeza de verbas, estatísticas e comparações, tão ao gosto do cacoete lulista, criará uma agenda positiva, afastando a impressão de que o governo saiu da inércia, e, ainda, poderá driblar a crise que engolfa o PT e, por conseqüência, a própria administração federal. Os 50% de possibilidades de dar errado ou de não gerar o efeito pretendido se relacionam ao fato de que as maiores obras, como hidrelétricas, serão apenas iniciadas, afrouxando a onda de entusiasmo que se poderia formar ao correr da campanha. Já a Operação Tapa-Buracos, de curto prazo, lembrará aos viajantes que o País é um gigantesco queijo suíço, não se descartando a idéia de que o mérito da ação será repartido com as administrações estaduais.

Recorde-se, ainda, que Fernando Henrique, no final do mandato, em 2002, dispunha de R$ 29,6 bilhões para gastar. Mas seu candidato, José Serra, perdeu a eleição. E a expressão nacional, na época, não estava carregada da sonoridade pejorativa de mensalões, valeriodutos e Delúbios. Ademais, ao inaugurar o ano político com a escorregadia entrevista ao programa Fantástico, da TV Globo, o presidente Luiz Inácio mostrou-se mais assustado que entusiasmado, esforçando-se para escapar do lodaçal que afoga a cria querida. Ora, se o simbolismo obreiro-faraônico, que tanto vicejou na era malufista em São Paulo, ameaça não colar na imagem de Lula, o que sobrará para compor o discurso de candidato? Este será, seguramente, um dilema dos petistas e do próprio presidente. A teia de angústias não é sem propósito.

O PT chegou ao centro do poder sonhando com a utopia socialista. Era o que se ouvia da boca dos dirigentes. O sonho se desfez com o primeiro abraço do governo nas políticas neoliberais, responsáveis pela estabilidade econômica do País. Foi duro para o partido constatar: "Lulinha paz e amor" é mais rigoroso na aplicação do dicionário liberal que FHC. Com a bênção macroeconômica, o governo foi entronizado no altar do monetarismo, causando indignação em parcelas das hostes petistas. A identidade social que, desde os tempos da República do ABC, funcionava como manto sagrado do PT foi manchada. A política compensatória do Executivo é acusada de ser instrumento assistencialista, contribuindo apenas para manter o status quo das margens carentes. Há quem veja na política de inserção internacional do País e na frente de defesa da unidade terceiro-mundista o único vestígio esquerdista do governo. Mas as cinco voltas do presidente ao redor do planeta, como já mostrou o Estado (1º/1, A1), não alcançaram grandes resultados.

O périplo de Lula por 25 países apenas contribuiu para reforçar a dualidade do perfil: ora prega no púlpito esquerdista, ora age como self-made man do mercado de capitais. Desfralda a bandeira revolucionária, puxando coro às "revoluções" venezuelana de Chávez e cubana de Fidel, mas fuma o charuto de George Bush. Uma no cravo, outra na ferradura. Ao pular com facilidade do Pólo Norte para o Hemisfério Sul, Lula desvia a rota do PT e confunde as esquerdas. O que delas resta? Com exceção do PSOL, da senadora Heloisa Helena, do PSTU e do PCO, que se encolhem na ponta mais radical do arco ideológico, siglas tradicionais como PCdoB, PPS (originário do "partidão", o antigo PCB), PSB, PDT e PV jogam mais próximos do centro. E já não são consensuais entre elas receitas como forte intervenção do Estado na economia, rigoroso controle de capitais, aumento de gastos públicos, crescimento econômico e descontrole da inflação, incentivo à luta de classes - coisas que oxigenavam o populismo.

Assim, o discurso "esquerdista" de Lula e de assessores que giram ao redor tem a mesma consistência de nuvens. Juntando o canteiro de obras inconclusas à maré vazante de metáforas saturadas, fecha-se o circuito das indagações: qual será a abordagem do presidente para obter credibilidade? A faceta ética? Mas a ética petista está conspurcada. Dizer que não tem nada que ver com o PT? Ninguém acreditará. Aqui se chega ao ponto central da hipótese. Faltará produto crível na campanha eleitoral deste ano. Vejamos, agora, o prisma das oposições. Os tucanos - de onde poderá sair o principal candidato oposicionista - deverão dizer que Lula segue a trilha que abriram na economia. O que não será novidade. O eleitor pensará duas vezes na alternativa de trocar seis por meia dúzia. Portanto, o jogo econômico estará empatado. Na esfera moral, a perspectiva é a do debate sobre quem roubou mais ou quem roubou menos. Há acusações de sangue contaminado nas veias de todos os partidos. O jogo ético também poderá ficar no empate. Portanto, urge aos candidatos achar um norte, algo como idéias criativas, sérias e viáveis. E, sobretudo, confiáveis, pois a lama acumulada na política, de tão vasta, ofuscará as raras fontes de água cristalina. Encontrar uma fala que convença a população descrente não é tarefa de pouca monta.

Quanto à projeção presidencial de que este será o ano da grande colheita e de que o País verá a administração mais revolucionária de sua história, trata-se apenas de mais um sinal de que Lula é candidato e abre a campanha eleitoral. Maomé levou o povo a acreditar que poderia atrair uma montanha. A massa reuniu-se. Maomé chamou pela montanha várias vezes. Nada. Foi, então, que exclamou: "Se a montanha não quer vir até Maomé, Maomé irá até a montanha." Quem promete grandes prodígios ameaça falhar. O fundador do islamismo reconheceu o fracasso da promessa. Redimiu-se com modéstia. No ano em curso, o desafio dos candidatos é convencer o povo a subir a montanha mais uma vez.