Título: Governo se perde no labirinto político do presidente
Autor: Paulo Moreira Leite
Fonte: O Estado de São Paulo, 08/01/2006, Nacional, p. A6

Nem populista nem maquiavélico, Lula faz uma gestão marcada por um comportamento errático

BRASÍLIA - No último ano do mandato conquistado em 2002, forma-se um retrato mais nítido do governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Lula não é um presidente populista, embora faça dupla fotográfica com Hugo Chávez quando corteja o eleitorado histórico do PT. A mania de promover conflitos entre ministros lhe deu a fama de maquiavélico, mas essa visão é imprópria. Lula é menos calculista e mais caótico. Revela mais dispersão de objetivos do que astúcia de métodos, movendo-se num labirinto confuso, que preocupa aliados e ministros. "Só espero que este ano o presidente não tente fazer nova reforma ministerial", suspira um auxiliar do Planalto, mãos à cabeça. "Nada deixa o presidente tão paralisado quanto a escolha de nomes." A última dança de cadeiras de Brasília foi um sofrimento longo e inútil, pois no último minuto Lula cancelou alterações cozinhadas por meses. Em 2006, com a própria sucessão à vista, o ano se inicia com confusão de bom tamanho.

O próprio presidente insiste em fazer o jogo de que não sabe se tentará a reeleição. Quase ninguém acredita nessas dúvidas - até porque a desistência implicaria auto-avaliação catastrófica de seu governo. Mas ao admitir a possibilidade de jogar a toalha, em governo que nem sequer tem herdeiro reconhecido, Lula reforça a desorientação do Planalto.

No cotidiano de Brasília os confrontos entre auxiliares tornaram-se um espetáculo regular e permanente, como os charutos Cohiba, símbolos do status do PT do mensalão que ainda hoje a Presidência distribui em recepções fechadas. Os ministros lutam entre si, selvagemente, num combate de homens solitários. O comportamento de Lula acirra contradições. Tem costume de usar a boca de um ministro para fazer críticas a outro, o que gera desconfianças entre todos. Evita comprometer-se com auxiliares e não estimula conversas nas quais é preciso despir-se da autoridade presidencial. Convoca reuniões ministeriais mas a pauta não é definida com clareza.

"O presidente tem estilo democrático de governar", diz Jaques Wagner, ministro de Relações Institucionais. "Ele chama os ministros para debater. Se algumas vezes o debate produz desgastes, o saldo final é positivo. Prefiro governo que discute a um governo autocrático."

Um ministro de tempos passados pergunta pela eficácia. "Em qualquer governo, o presidente resolve as medidas simples, assina os decretos e enfrenta os descontentes. No governo do PT, você discute antes para resolver depois. É como naqueles sindicatos onde se faz uma assembléia depois da outra mas não se não resolve nada." Um assessor do Planalto observa: "Nunca vi administração com tanto medo de errar."

Perguntados se esse comportamento cuidadoso, aparentemente hesitante, poderia ter como origem uma insegurança a respeito dos grandes assuntos de Estado, conforme sustenta a oposição, três ex-ministros repetem o argumento democrático, de que Lula trabalha pelo diálogo, num discurso que tenta transformar defeito em virtude. Ministro de Ciência e Tecnologia por um ano e meio, o deputado Eduardo Campos (PSB-PE) mantém a lealdade ao fazer uma crítica ácida: "Na maioria das vezes o governo dá mais atenção à mediação do que à execução, como se não tivesse prazo definido para acabar."

Um amigo dos tempos das greves do ABC, hoje em Brasília, admite que, ao agir dessa maneira, Lula divide responsabilidades "e nunca fica sozinho quando toma uma decisão errada". Quando Lula tomou posse, temia-se que, inspirado pelo marketing de Duda Mendonça, fizesse um governo do espetáculo. Na prática, Lula corre o risco de ser um presidente espectador - que assiste à passagem do tempo, aproveita determinadas oportunidades que a conjuntura oferece mas fica longe de promover mudanças necessárias e duradouras.

Faz parte do sindicalismo mental do governo o esforço para produzir unidades artificiais a qualquer preço. Para um ex-ministro, o problema é político: o Planalto não consegue elaborar linhas de ação para o conjunto do ministério nem disciplinar o trabalho da equipe, carência que transforma debates menores em conflitos de natureza estratégica. "As coisas se passam como se fosse preciso sempre começar de novo. Por exemplo: o presidente concordou com o superávit de 4,5% definido pela equipe econômica. Mas nem convenceu os demais ministros a seguir essa linha nem enquadrou a equipe econômica quando ela começou a fazer um superávit de 6% ou mais, prejudicando os demais colegas. Isso não é falta de autoridade. É falta de política."

Uma pessoa que ocupou a secretaria-geral de um ministério riquíssimo em verbas nominais mas miserável em recursos liberados, recorda-se de ter assistido a uma reunião de papéis invertidos. "O presidente reivindicava investimentos e Palocci (Antonio Palocci, ministro da Fazenda) respondia que ia ver se dava", conta essa pessoa, com a condição de ter seu nome mantido em sigilo. "Depois não se liberava nada."Capaz de falar sobre o Fome Zero por onde andou desde a posse, Lula zela pessoalmente pelo Bolsa Família, a prioridade real do governo. O presidente não permite que lhe faltem recursos nem atenção. "O dinheiro aparece quando Lula joga sua autoridade", afirma um ministro.

Companheiro de viagem no início do governo, o deputado Fernando Gabeira (PV-RJ) está convencido de que por trás da confusão Lula tenta administrar o País a partir de um "verticalismo fora de época". Para o deputado, o "modelo deste governo é o tradicional da esquerda. O problema é que o verticalismo só dá certo quando o topo da pirâmide é ocupado por gente muito competente. No governo Lula, você tem conflitos permanentes. Não há discussões mas brigas." Nesse mundo de autoridades que não comandam e de subordinados que não obedecem, Gabeira lembra projeto ambiental ambicioso, que envolvia vários ministérios no início do governo. "Quando perguntei quem iria coordenar os ministros, o José Dirceu me disse: `O Lula controla.¿ Tive vontade de sorrir, mas era muito preocupante."

Para Gabeira, o governo não tem coordenação porque lhe falta compreensão política comum das coisas. "Eles se queixam da área de comunicação mas isso é falso problema. O governo é lento para perceber as coisas. Assim, só compreendeu o alcance de uma medida como o acerto de contas com o FMI depois que o presidente argentino, Nestor Kirchner, copiou a idéia e a anunciou pela TV. Só então o governo Lula descobriu que poderia ter feito estardalhaço. Como era tarde, passaram a falar mal da comunicação."

Lula sempre defendeu o ministro da Fazenda, Antonio Palocci, contra tudo e contra todos. Mas defendeu Henrique Meirelles, no Banco Central, contra Palocci, que, aos poucos, se tornara um crítico persistente ainda que discretíssimo da taxa de juros. Quando integrantes da equipe de Palocci imaginaram que tinham músculos para afastar Meirelles, Lula disse não. Quando surgiu uma vaga no Ministério do Trabalho, convocou o sindicalista Luiz Marinho para o lugar. De olho no próprio eleitorado, Marinho passa o tempo a bater bumbo contra Palocci. Lula também garantiu o status de ministro ao presidente do BC, emancipando-o do ministro da Fazenda. Empolgado com as idéias de Meirelles, Lula chegou a estimular o presidente do Banco Central a fazer palestras onde fosse convidado, inclusive nos sindicatos. Mas quando Dilma Rousseff criticou Palocci por causa dos juros fixados por Meirelles e seus colegas de diretoria, Lula apoiou a ministra ao dizer que aplaudia o debate entre auxiliares. Quando o IBGE divulgou a recessão, no final de 2005, passou a dizer que estava irritado com Palocci. Chegou a usar palavrões para falar do ministro. Para um antigo ministro, "o presidente defende os ministros, mas não sua política. Protege o santo mas não defende o milagre."