Título: A singularidade chilena
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 17/01/2006, Notas e Informações, p. A3

Nada mais fácil - e equivocado - do que vincular a uma suposta maré esquerdista na América Latina a vitória de Michelle Bachelet, a candidata da coligação socialista-democrata-cristã Concertación, nas eleições presidenciais chilenas concluídas domingo. Em primeiro lugar, é um disparate sustentar que o brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, o argentino Néstor Kirchner, o uruguaio Tabaré Vázquez, o boliviano Evo Morales e o venezuelano Hugo Chávez rezam em coro pela mesma cartilha ideológica. Segundo que, ao sufragar a socialista Michelle, a maioria do eleitorado chileno mostrou que tende a se identificar com - por exemplo - o tipo de esquerdismo de que faz praça, demagogicamente, o presidente da Venezuela. Se o seu país é o mais esquerdista do Continente, como ele quer que seja percebido, então o Chile é o mais direitista, porque - abstração feita dessa arqueológica nomenclatura ideológica - o regime chileno é sem dúvida o antípoda do regime chavista, seja do ângulo político, do social ou do econômico. Ao cenário latino-americano atual se aplica perfeitamente o lugar-comum de que cada caso é um caso. Chávez é um caudilho populista que se banha em petróleo, o que lhe permite fazer políticas assistencialistas, que ele chama de sociais, à custa do desenvolvimento econômico. Evo Morales, que acabou de ser eleito na Bolívia, chama a atenção antes pelos peculiares fatores socioculturais que pela primeira vez levaram ao poder em La Paz um membro das etnias indígenas majoritárias no país do que pela improvável perspectiva de estatização da economia. Tabaré Vázquez, outrora um socialista radical, tratou de se entender com os Estados Unidos, à revelia do Mercosul, tão logo tomou posse. Néstor Kirchner é um nacional-desenvolvimentista como foi o criador de seu partido, o parafascista Juan Domingo Perón. E de Lula se pode dizer, como o economista liberal Paulo Guedes disse à Veja desta semana, que "não é Chávez, não é Fidel, não é Morales - e pedir mais do que isso não é sensato".

E o Chile pós-Pinochet, aos 15 anos, outra coisa não é do que uma expressão esplendidamente bem-sucedida do modelo que a esquerda arcaica chama de neoliberal. Nesse pequeno país, único na América Latina pelo alto nível educacional do seu povo amplamente homogêneo e por uma economia cujas características a tornam muito mais manejável do que a brasileira ou a mexicana, o êxito da aliança política de centro-esquerda que sucedeu ao ditador se deve à clarividência de preservar os fundamentos thatcheristas da sua política econômica, combinando-os com um enfoque social pronunciado. Isso permitiu aos três governos consecutivos da Concertación reduzir a pobreza, de 45% da população total, no final da ditadura, aos atuais 19%. Escrevendo domingo no Estado, o economista Maílson da Nobrega, fez uma síntese do que faz do Chile um caso excepcional.

As diretrizes econômicas dos 17 anos de pinochetismo, das quais o país redemocratizado não se desviou, tornaram-no o mais aberto da região e o único a produzir superávits públicos desde 1987. Por isso, a relação entre a dívida pública e o PIB é hoje da ordem de 10%, a menor das economias emergentes. A taxa básica de juros é de 4,5%. Além da austeridade fiscal, vigoram o sistema de metas de inflação e o câmbio flutuante. O Banco Central é independente. A Previdência Social foi privatizada. "Serão os socialistas chilenos neoliberais (seja lá o que isso signifique)?", pergunta Maílson. "Claro que não. Esse tipo de discussão boba não existe no Chile."

Eis por que é uma sandice relacionar a eleição de domingo naquele país com a "onda esquerdista" na América Latina. Afinal, a coligação democrata-cristã-socialista, vitoriosa novamente, está no poder desde o fim da ditadura e o fato de Michelle Bachelet ser da ala esquerda do Partido Socialista não irá alterar em nada o rumo seguido até agora com tanto êxito - a não ser por uma ênfase maior no social, que o eleitorado teria "pedido" ao fortalecer a esquerda da Concertación.

Efetivamente, na Concertación, que conquistou, pela primeira vez, a maioria nas duas Casas do Congresso, aumentou a vantagem da esquerda - o Partido Socialista e a sua criatura, o Partido pela Democracia - sobre a Democracia Cristã (DC) na Câmara. No Senado, onde a DC era majoritária, a situação se inverteu. Michelle Bachelet tem tudo, portanto, para fazer um grande governo e aprofundar a excepcionalidade chilena.