Título: Uma metáfora chamada Michelle
Autor: Roberto Lameirinhas
Fonte: O Estado de São Paulo, 17/01/2006, Internacional, p. A14

Embora tudo tenha corrido do modo mais tranqüilo, não deixa de ser assustador. Tanto pelo que aconteceu agora como pelo que ainda poderá vir. Pela primeira vez na história do Chile, uma mulher é eleita presidente da república. Ela é portadora de características nada convencionais num país de tradição machista que cultiva valores conservadores: é separada, não tem um homem a seu lado que participe como ¿primeiro-damo¿ e tem filhos de diferentes casamentos. Além disso, é médica pediatra formada na ex-República Democrática Alemã (comunista), filha de um general constitucionalista que colaborou com Salvador Allende e não se rendeu ao golpe de Augusto Pinochet, sendo detido e torturado até morrer em conseqüência de um enfarte. Ela mesma foi presa e submetida a maus-tratos. Como dezenas de milhares de chilenos, também partiu para o exílio e depois trabalhou na resistência.

Ela própria é uma metáfora viva das variadas formas de aflições das vítimas da ditadura militar, mas também da energia moral e da habilidade política que recolocou o Chile na democracia.

Apesar dessa história na qual não faltam dissabores e problemas familiares, a loura presidente é uma mulher alegre e valente que conseguiu sua pré-candidatura há cerca de seis meses transmitindo simpatia, naturalidade e calor humano.

Profissionalmente, adquiriu experiência na bem-sucedida administração de Ricardo Lagos. Primeiro, como ministra da Saúde, onde fez uma tentativa desesperada para cumprir a exigência do presidente para que acabasse com as filas de doentes pobres nos hospitais em três meses. Não conseguiu. Porém, em vez de perder prestígio na tentativa, conquistou a afeição das pessoas que souberam apreciar sua luta contra o precário sistema de assistência médica do Chile.

Dali subiu num tanque que dirigiu com sensibilidade feminina ¿ foi ministra da Defesa. Que maneira de compor-se então com as Forças Armadas pós-Pinochet! A filha de um general torturado pelos próprios companheiros de armas passa ser a comandante-chefe! Assistimos ali a um momento emblemático da recuperação democrática chilena. Os homens de farda acatando esse veredicto constitucional e ela mostrando que a sociedade chilena trata seus traumas e dores pela via do perdão e da reconciliação.

Quando chegou o momento de definir numa primária a candidatura à presidência da república, a popularidade do ¿fenômeno Bachelet¿ era tanta que, após alguns alvoroços, sua rival democrata-cristã, Soledad Alvear, se rendeu às evidências e abandonou a disputa.

Se este é o claro caminho até aqui, mais incerto é o que virá pela frente.

Quo vadis, Bachelet? Não se pode negar que exista uma sensação de que a ênfase do seu governo poderá ser conseguir mais igualdade e mais justiça social. Em termos mais tradicionais, há a percepção generalizada de que Bachelet será ¿mais socialista¿ que Lagos e no exercício do cargo tenderá a acelerar a diminuição da diferença entre ricos e pobres.

Se este for seu objetivo prioritário, a nova líder chilena terá a seu favor algo que Lagos não teve ¿ pela primeira vez um Parlamento com maioria da própria Concertação, a aliança partidária que a conduziu ao poder. Se houver energia ¿progressista¿ nessa combinação, a gestão de Bachelet poderá resultar num alegre e harmônico pas de deux.

Para tanto, tem de obter de seus ministros e assessores uma insólita equação na América Latina : por um lado, não estragar o sucesso alcançado com as políticas liberais que impulsionaram o forte crescimento econômico; por outro, mobilizar essa riqueza em benefício dos pobres, que têm sido tolerantes com as ¿etapas¿ da reconstrução econômica e política do Chile e provavelmente sentem. juntamente com a presidente, que está na hora de eles se beneficiarem e de suas necessidades setem atendidas.

Se ela se propuser a isso, talvez o caminho não seja um mar de rosas. Pois, se por qualquer motivo, o agressivo empresariado chileno se sentir contrariado em seus interesses, pode dar vazão a sua irritação. E são pessoas que pegam em armas. Embora, felizmente no Chile de hoje, essa conhecida expressão seja apenas uma inofensiva imagem literária.