Título: Travessia 2006
Autor: Sergio Fausto
Fonte: O Estado de São Paulo, 12/01/2006, Espaço Aberto, p. A2

Não será um ano qualquer este de 2006. Ele começa sob a expectativa do confronto entre as duas mais expressivas forças políticas surgidas no processo de democratização da vida brasileira. Semelhante disputa já ocorreu nas três últimas eleições presidenciais. Em nenhuma delas, porém, ela se anunciou tão áspera e tão incerta em seus resultados. Será prenúncio de mais um e decisivo passo na afirmação da democracia como forma de convivência, resolução de conflitos e construção de consensos fundamentais entre nós, brasileiros? Ou, ao inverso, vem por aí um misto de vale-tudo para atacar e desfaçatez para se defender, uma ou outra coisa nos levando a retroceder, ao invés de avançar na direção desejável? Não faltam motivos para crer na primeira possibilidade.

Ainda que o comportamento do atual governo levante dúvida sobre como reagirá diante da perspectiva de nova alternância no poder, desta vez desfavorável aos seus integrantes.

Desde que se restabeleceram as eleições diretas para a Presidência, nunca houve condições objetivas tão favoráveis a que a disputa ocorra no terreno das expectativas realistas, com base na comparação entre agendas e estilos de governo já submetidos à prova. A experiência do PT no poder reduziu a margem para o maniqueísmo e a mistificação. Essa é a melhor herança do período que se iniciou em junho de 2002 - quando a direção do partido subscreveu a Carta aos Brasileiros, abjurando de público velhas crenças - e que se encerrará este ano com a eleição de um novo governo.

Seja ele qual vier a ser, não poderá representar a simples repetição do bom e do ruim que houve nesse período.

Desses quatro anos deveremos ter tirado a lição - principalmente o PT, seus eleitores e simpatizantes - de que os problemas brasileiros são mais complexos do que supõe a surrada tese da 'perversidade das elites'; de que não há agrupamento político detentor do monopólio das virtudes cívicas (e que merecem desconfiança os que a si atribuem essa condição); de que tampouco existe elixir da 'vontade política' capaz de nos fazer superar da noite para o dia todos os desafios que temos como país. Mas também deveremos ter tirado a lição de que é possível, sim, superar os nossos desafios, desde que tenhamos uma noção relativamente realista e compartilhada sobre os tempos necessários para fazêlo, um conjunto de poucos, mas cruciais, objetivos que estejam acima das nossas eventuais divergências e um acordo mínimo em torno de certas políticas que, não sendo imutáveis, devem perdurar por vários mandatos presidenciais.

Ajudaria muito ao desenvolvimento do Brasil se conseguíssemos fazer da disputa eleitoral de 2006 a oportunidade para confirmar o acordo implícito quanto ao regime atual de política econômica, estabelecer as linhas gerais de um programa de consolidação fiscal de longo prazo e definir prioridades - de novo, poucas, mas cruciais - para o investimento público nos próximos oito ou 12 anos. Não menos importante seria conformar um marco regulatório estável para o investimento privado em infraestrutura. Está ao nosso alcance fazêlo. Quando olhamos para trás e verificamos onde nos encontrávamos dez anos atrás, antes do real, quando nem sequer havia consenso sobre a estabilidade da moeda, não há como não acreditar que seremos capazes agora, como país, de dar mais um e decisivo passo na construção e realização de uma perspectiva compartilhada de desenvolvimento. Evito propositalmente a expressão 'projeto de desenvolvimento', pois ela supõe um grau de concordância, em extensão e profundidade, que parece irrealizável e mesmo indesejável numa sociedade pluralista e democrática como se quer a nossa.

Se vamos ou não realmente conseguir avançar, dependerá em larga medida do modo como jogarmos a partida eleitoral que se aproxima. Isso vale, especialmente, para os principais jogadores, a começar pelo presidente da República, na dupla e delicada condição de candidato à reeleição e chefe de Estado. Desde o início da crise que passou a corroer as entranhas de seu governo, Lula inclinouse por uma atitude de negação do óbvio, auto-isenção de responsabilidades e diversionismo retórico que desmerece a sua figura política e o apequena como chefe de Estado. Assim, em lugar de evitar, contribuiu decisivamente para azedar um caldo que já se vinha deteriorando.

Não se pode pedir ao presidente da República que se recolha a um silêncio obsequioso. É, no entanto, preciso, mesmo indispensável, que finalmente se dê conta de que a palavra é a matéria fina e sempre esquiva de que são feitas as instituições em sociedades civilizadas. A mesma obrigação tem a oposição, que, justiça seja feita, não se tem havido mal nessa matéria, salvo escorregões isolados. Tomara siga no mesmo diapasão.

Lula irá lutar por um segundo mandato e é perfeitamente legítimo que o faça. No momento em que se aproxima a hora de confirmar a sua candidatura à reeleição, sobre a qual não resta dúvida, é oportuno que reflita sobre o que deseja fazer com a sua notável biografia de líder popular e protagonista da democracia brasileira. Para redimi-la terá de zelar pela convivência política, em lugar de lançar acusações descabidas aos adversários; dizer com clareza o que pretende num eventual segundo mandato, em lugar do auto-elogio do que suposta ou efetivamente fez no primeiro, sempre sobre a base do que já se havia feito antes; e, principalmente, oferecer a nós todos uma explicação veraz sobre o emaranhado de malfeitos cometidos em seu governo e em seu partido, em lugar de nos dizer que somos nós que lhe devemos desculpas. Diante disso, fica a pergunta: terá o presidente Lula reservas de grandeza para finalmente se erguer à altura do seu cargo?