Título: A conversão de Olmert ao caminho da paz
Autor: Lourival Sant'Anna
Fonte: O Estado de São Paulo, 15/01/2006, Internacional, p. A20

A democracia israelense demonstra mais uma vez suas virtudes. O afastamento do "herói" Ariel Sharon não afetou seu funcionamento. Todas as engrenagens continuam intactas e girando. Um primeiro-ministro interino continua tocando os assuntos do governo. Trata-se de Ehud Olmert, antigo braço direito de Sharon. Olmert o substituirá também à frente do novo partido político, o Kadima, criado por Sharon para guinar para o centro seus antigos amigos do Likud, este agora dirigido pelo "falcão" Binyamin Netanyahu. Perfeito. Só que persistem as incertezas, pois não se sabe quais eram as intenções exatas de Sharon. Ele pretendia concluir o processo de paz ou, ao contrário, aproveitar a retirada da Faixa de Gaza para endurecer a ocupação da Cisjordânia e de Jerusalém Oriental? Tampouco se conhecem as intenções de Ehud Olmert, o novo homem forte de Israel, ao mesmo tempo primeiro-ministro e líder do centrista Kadima.

Uma coisa certa é que Olmert não tem nada do carisma de Sharon. Personagem terno, que só foi militar de escritório, mais funcionário que guerreiro. Isso não quer dizer um homem fraco. Como prefeito de Jerusalém durante dez anos, ele controlou com mão de ferro a pequena população nacionalista de Cidade Santa. Trata-se de um homem seguro de si, intratável, grande manipulador, se necessário demagogo, hábil na polêmica e, às vezes, uma língua ferina.

O grande mistério está em suas intenções. Até aqui ele era uma figura essencial do Likud, em que integrava a ala dos falcões. Seus adversários o censuravam, aliás, por "só acreditar na força". Alguns anos atrás, ele se opunha visceralmente aos que pensavam em dividir Jerusalém (como Shimon Peres), ou ainda reduzir o programa de colonização na Faixa de Gaza ou na Cisjordânia.

Mas Sharon também defendia essas teses de força e isso não o impediu de fazer uma virada de 180 graus há seis meses e adornar-se, nos últimos meses de sua vida ativa, com as plumagens de "anjo da paz". Em todo caso, nada nos primeiros atos de Ehud Olmert sugere uma nova "virada de casaca" e um retorno do primeiro-ministro interino ao ninho dos falcões.

O caso particular de Jerusalém é significativo de suas viradas de casaca: como prefeito, Olmert inchou a população judaica em Har-Homa e Ras al-Amud e fechou a Casa do Oriente, que permitia à Autoridade Palestina manter um olho sobre Jerusalém. Em suma, fez de tudo para preservar o caráter judaico de Jerusalém.

Ariel Sharon apoiava essas ações: pois então ele não comprou, em 1987, quando da primeira intifada (revolta palestina), um apartamento num bairro árabe de Jerusalém Oriental, na Rua el-Wad, apartamento que nunca ocupou, mas equipou com quatro enormes bandeiras israelenses e soldados armados postados sobre o telhado e ao pé do imóvel. Tratava-se de perenizar a ocupação israelense da parte oriental da Cidade Santa.

Quem é Olmert hoje? A julgar por suas últimas declarações, ele aceita a divisão de Jerusalém, onde renunciaria aos bairros periféricos de Jerusalém Oriental habitados por palestinos para conservar uma maioria judaica na própria cidade. Quanto às colônias, esse antigo defensor (como Sharon) dos assentamentos hoje se declara pronto a ordenar novas retiradas da Cisjordânia. Se essas disposições se confirmarem, Olmert terá dado razão aos que o consideram um pragmático e não um ideólogo (como seu chefe Sharon).

A bem dizer, e admitindo que a conversão de Olmert ao caminho da paz se prolongue, ele não seria o único a mudar de posição. Para seu novo partido, o Kadima, Sharon conseguiu atrair vários antigos políticos do Likud, até então pouco inclinados à negociação.

Por exemplo, na equipe governamental de Olmert encontra-se Tzipi Livni, que também sofreu uma transformação radical sob a influência de Sharon. Livni já foi declarada um dos falcões mais duros de Israel; entretanto, Sharon soube convertê-la às virtudes da paz. No último governo de Sharon, ela foi uma das mais ardorosas defensoras do plano de retirada israelense da Faixa de Gaza. Na nova equipe, Tzipi Livni poderia obter o posto de ministra das Relações Exteriores, ambicionado, provavelmente, pelo velho trabalhista Shimon Peres. Mas a Peres, um eterno perdedor, falta envergadura. Além disso, sua idade avançada constitui um obstáculo.

Resta uma última questão: admitindo-se que a mudança de falcão para pomba seja sincera e durável, Olmert terá envergadura suficiente para impor novas concessões, quando até mesmo Sharon, com toda sua aura, teve dificuldades para impor a retirada de Gaza?