Título: Nada de curvar-se ante gigantes não democráticos
Autor: Timothy Garton Ash
Fonte: O Estado de São Paulo, 15/01/2006, Internacional, p. A19

O ano de 2006 começou com um gostinho do que poderá ser 2026. Uma superpotência em energia com mentalidade imperial dá uma prensa brutal por motivos políticos em seus vizinhos mais democráticos. Eles esperneiam, mas a Rússia tem o petróleo e o gás. Enquanto isso, a China, uma superpotência emergente controlada por um regime comunista, continua flexionando os músculos política e economicamente. E por todo o Ocidente ouve-se o som da aquiescência. Serão assim as coisas no futuro? Muitos europeus têm manifestado críticas à visão de Francis Fukuyama de um triunfo histórico mundial do capitalismo democrático, e rejeitado a tentativa de George Bush de apressar esse triunfo com a ajuda de Deus e das forças militares americanas. Desde o fim da guerra fria, porém, a maioria de nós provavelmente nutre um sentimento de que quanto mais ricos e mais integrados na economia global os países se tornam, mais democráticos tenderão a ser.

O último e excelente compêndio anual de especulação bem informada da revista The Economist, The World in 2006, examina suas previsões do gênero feitas nos últimos 20 anos e avança até 2026. Admitindo que seus entendidos inevitavelmente erraram muito, o editor, Daniel Franklin, conclui perguntando: "O que acertamos?"

"Muitas das questões essenciais, incluindo uma convergência contínua rumo à globalização e ao progresso", responde ele. "Apesar dos riscos que se adensam de 2006 em diante, essa marcha seguramente prosseguirá." Eu gostaria de acreditar que ele está certo. Mas vejamos, por um momento, por que poderia estar errado. Afinal, os últimos 20 anos abrangeram um período incomum: o fim da guerra fria e suas conseqüências. Se tomássemos quase qualquer outro período de duas décadas no século 20, teríamos de reconhecer o dinamismo de potências não democráticas, agressivas, da Alemanha guilhermina, passando pelo Eixo fascista até a União Soviética. E, numa perspectiva mais longa, nos situamos no fim de dois séculos em que o mais poderoso país individual do mundo foi uma democracia anglo-saxônica: primeiro a Grã-Bretanha, depois os EUA. Não foi assim antes, e não será jamais.

É claro que hoje a maioria dos países ricos é também livre. As exceções são os países que "vivem de renda", como Arábia Saudita e Rússia, cujas elites antidemocráticas podem sobreviver muito tempo sem burguesia ou sociedade civil fortes extraindo recursos naturais por meio de estatais como a Gazprom. Enquanto eles continuarem dependentes de suas reservas de energia e matérias-primas, nossa influência política sobre esses países será limitada.

Felizmente, a maioria das prováveis superpotências econômicas de amanhã não está equipada, por natureza, com uma abundância tão corruptora. Num estudo, analistas da Goldman Sachs sugeriram que, num espaço de 20 anos, o que eles chamam de BRIC - Brasil, Rússia, Índia e China - poderá controlar metade da economia mundial hoje dominada pelo G6 (o G7 menos Canadá). As previsões mais recentes da Economist fazem da China a maior economia mundial em 2026 quando usam a paridade no poder de compra, uma medida do tamanho real da economia provavelmente melhor que as taxas de câmbio de mercado. Depois viriam EUA, Índia, Japão e Alemanha, nesta ordem. Na seqüência, o Reino Unido, a pouca distância de Rússia e Brasil.

A maioria desses países é democrática. A Índia, maior democracia do mundo, estaria entrando nas fileiras das superpotências econômicas. Apesar da corrupção política estarrecedora que o assola, o Brasil ainda é classificado pela Freedom House como país livre. A grande interrogação é, portanto, a China. Poderá ela, com seu "capitalismo leninista", refutar a aparente regra de que todo país capitalista que não deriva de recursos naturais o principal de sua riqueza tende a se tornar mais livre à medida que aumenta sua prosperidade? Se assim for, e se as previsões da Economist sobre o PIB se cumprirem, a perspectiva toda muda, pois a maior economia do mundo será controlada por um Estado não democrático. A essa altura, a Índia deveria ser o mais dinâmico dos dois gigantes do Leste Asiático, pois a China estaria sobrecarregada por uma população envelhecida. Mas, por enquanto, a China tem recursos de sobra para esbanjar.

A Rússia é com certeza a maior preocupação, especialmente para a Europa, mas as principais questões das próximas duas décadas envolvem Índia e China. Se a Índia permanecer uma democracia, e a China caminhar nesta direção, o editor de World in 2006 achará o otimismo liberal de seu predecessor plenamente justificado. Se não, seria como alguém em 1926 olhando para as esperanças liberais britânicas de 1906.

Sendo assim, poucas coisas são mais importantes na próxima década do que o modo como lidaremos com a China. Um exemplo da forma errada de abordar a China foi dado recentemente por sir John Bond, presidente do banco HSBC, em entrevista à BBC. Ele fez uma apologia do regime comunista chinês digna da coonestação feita por Sidney e Beatrice Webb da Rússia stalinista. A China, disse ele, provavelmente permanecerá sob a "liderança de partido único" por mais tempo que a maioria dos comentaristas espera. Ele já trabalhou sob toda sorte de regimes e viu economias florescerem com um sistema de partido único, tanto quanto sob regimes democráticos. Sobre os direitos humanos, observou que, se tivéssemos um líder chinês presente, ele provavelmente diria que eles primeiro tiveram de atender os direitos humanos básicos de alimentação e vestimenta das pessoas antes de passarem para direitos humanos mais avançados, ao estilo ocidental. O HSBC pelo comunismo!