Título: Lobby causa indignação nos EUA
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Fonte: O Estado de São Paulo, 15/01/2006, Internacional, p. A18

Caso de Jack Abramoff, que aceitou cooperar com a Justiça para diminuir sua pena, provoca reação no Congresso

Em 1872, alguns veteranos republicanos, revoltados com o tráfico de influência desenfreado no governo de Ulysses S. Grant, desafiaram-no na eleição. "Ele usa o serviço público do governo como uma máquina de corrupção e influência pessoal", reclamaram eles, e "mostra-se deploravelmente abaixo da tarefa a ele imposta pelas necessidades do país." A sala de negócios de Jack Abramoff era seu restaurante, o Signatures, e não o saguão do velho Hotel Willard, onde candidatos a favores tanto assediaram Grant que ele ajudou a popularizar o rótulo - lobista - que ainda persegue seus descendentes com um tom pejorativo.

Mas a confissão de Abramoff, no início deste mês, de crimes de fraude, evasão fiscal e conspiração para subornar funcionários públicos motivou indignação similar entre alguns dos membros mais experientes do Partido Republicano.

"Creio que, à medida que as coisas vierem à tona, será muito desagradável, e os republicanos sofrerão tanta pressão de sua base que precisarão promover reformas substanciais", disse Newt Gingrich, ex-presidente da Câmara (ele próprio teve de pagar US$ 300 mil para encerrar um caso de ética em 1997). "Isto é como Watergate."

Mas as coisas realmente vão mudar? Afinal, o próprio Grant conquistou um segundo mandato, apesar dos defeitos que acabariam manchando seu legado, e seu principal rival republicano, Horace Greeley, morreu derrotado e louco três semanas depois da eleição.

Será a corrupção uma parte do DNA de Washington? O que mais explica a sombria resignação dos veteranos de Washington que se perguntam como - e não se - algum escândalo vai estourar? "A história da civilização, para começar", respondeu Fred Wertheimer, presidente do Democracia 21, um grupo de ética. "Esse tipo de problema é enfrentado por todas as sociedades ao longo de toda a História. Ele vem e vai em ciclos, e torna-se mais comum quando as atividades são aprovadas pela sociedade."

Para vigilantes como Wertheimer, e para muitos democratas, essa tolerância data da conquista do Congresso pelos republicanos, em meados dos anos 90, quando novos líderes como o deputado Tom DeLay, do Texas, iniciaram uma campanha para encher a Rua K (endereço de algumas das maiores firmas de lobby em Washington) de lobistas republicanos e deixaram claro que as pessoas que buscavam influenciar teriam de "pagar para jogar", na forma de doações políticas e outras generosidades.

DeLay, ele próprio indiciado no ano passado no Texas em outro caso de financiamento de campanha e forçado a deixar a liderança da maioria na Câmara, tem laços antigos e íntimos com Abramoff. Agora, a declaração de culpa de Abramoff levanta a possibilidade de novos problemas legais para DeLay - e outros parlamentares.

A escala dos delitos de Abramoff - milhões de dólares em propinas de tribos indígenas, uma luxuosa excursão de políticos para jogar golfe na Escócia, o mau uso de uma fundação isenta de impostos - torna este caso extraordinário.

"Em geral, tem acontecido todo tipo de coisa dessa mesma espécie", disse Harry C. McPherson, que chegou a Washington há 50 anos como assessor de Lyndon B. Johnson no Senado e trabalha como advogado lobista desde quando saiu da Casa Branca, em 1969. "Mas nesta situação o grau realmente muda tudo. Ele transforma algo que os puristas achariam desagradável em algo totalmente inaceitável - em crime."

Mas o problema vai além de Abramoff, de DeLay e até mesmo do potencial inerente de abuso que existe quando um partido domina os três ramos do governo. Ele tem a ver com o espantoso crescimento da indústria do lobby, crescimento que acompanhou a expansão do próprio governo federal.

A ascensão da regulamentação governamental - primeiro no New Deal, depois nos anos 60 e 70 - criou um aumento paralelo dos esforços do setor privado para dominar o novo sistema. Entre o início dos anos 70 e meados dos 80, o número de associações setoriais dobrou; só na primeira metade da década de 80, o número de lobistas registrados quadruplicou, segundo a revista The Washington Monthly.

Um estudo do Centro para a Integridade Pública mostrou que, no início dos anos 90, as doações políticas de 19 grandes setores - entre eles o farmacêutico, o de defesa, o dos bancos comerciais e o da contabilidade - dividiam-se quase igualmente entre os dois partidos.

Em 2003, os republicanos tinham uma vantagem de dois para um. Desde 1998, constatou o centro, mais de 2.200 ex-empregados federais se registraram como lobistas, assim como 275 ex-assessores da Casa Branca e 250 ex-membros do Congresso. Muitas regras que governam a conduta permanecem deliberadamente vagas, e a Comissão de Ética da Câmara fica paralisada por problemas de funcionamento e disputas partidárias.

"O escândalo não é a violação das regras; o escândalo são as próprias regras", disse o deputado democrata Martin T. Meehan, que, ao lado do colega republicano Christopher Shays e dos senadores John McCain (republicano) e Russell D. Feingold (democrata), tem sido um líder na pressão pela reformulação das regras de financiamento de campanha e ética.

"O lobby é parte de nosso sistema, mas existe um conjunto de padrões e regras éticos que deveriam ser seguidos."

Com Feingold e o deputado democrata Rahm Emanuel, Meehan introduziu um projeto de lei para, entre outras coisas, exigir que lobistas apresentem relatórios financeiros trimestrais, em vez de semestrais, e revelem exatamente quem foi alvo de seu lobby no governo. Ex-membros do Congresso não poderiam fazer lobby com os colegas por dois anos, contra o prazo atual de um ano. Os membros teriam de apresentar, detalhadamente, itinerários e descrições de gastos em viagens com patrocínio particular.

Gingrich ofereceu mais idéias. Ele permitiria o levantamento de fundos ilimitados nos Estados ou distritos dos congressistas, mas proibiria a atividade no Distrito de Colúmbia e exigiria que todos os contatos entre lobistas e funcionários eleitos e nomeados fossem publicados semanalmente na internet. E também enxugaria um governo que cresceu ainda mais com os gastos pós-11 de setembro de 2001.

"São US$ 2,6 trilhões gastos em Washington, com a autoridade de regular tudo em nossas vidas", disse Gingrich. "Adivinhe: as pessoas vão gastar quantias inauditas para influenciar isso. Os problemas subjacentes são o governo e o dinheiro em grande proporção."

Obviamente, a experiência indica que, para cada buraco que uma nova lei puder tampar, os lobistas darão um jeito de abrir outro. A proibição das chamadas doações de "soft money" (recursos angariados e gastos fora do sistema regulador das eleições federais) a partidos políticos levou ao surgimento de novos grupos de interesses específicos, por exemplo. É de esperar que setores entrincheirados - e ocupantes de cargos entrincheirados de ambos os partidos - resistam a mudanças que ameaçariam a maneira que eles conhecem de fazer negócio.

Alguns lobistas, por seu lado, esperam que os congressistas reformistas não generalizem.

"Muito do que fazemos é um enorme esforço educacional, para evitar leis que consideramos bem-intencionadas, mas equivocadas", afirmou Joseph Tasker, vice-presidente para assuntos governamentais da Associação de Tecnologia da Informação dos Estados Unidos, que representa companhias como IBM e Microsoft em questões que incluem privacidade, pirataria e segurança na internet.

"Os congressistas não sabem das coisas; não são especialistas em tecnologia", afirmou ele. "Em meados dos anos 90, fazíamos uma reunião com um parlamentar sobre os padrões da TV de alta definição e falávamos sobre pixels e coisas do tipo, e ele disse: `Amigos, olhem, estou tentando acompanhá-los, mas uma das primeiras vezes que viajei de avião foi quando vim para Washington para assumir meu cargo, e lembro-me de olhar pela janela e pensar que parte da asa estava se desprendendo na aterrissagem, pois os flaps se levantavam.¿"

E, tratando-se de Washington, até mesmo os mais bem-intencionados esforços para seguir as regras podem desafiar o bom senso.

Em 2004, David McKean, um veterano assessor do Senado, publicou um livro elogiado pela crítica sobre Thomas "Tommy the Cork" Corcoran, talvez o mais bem-sucedido lobista de Washington do século 20.

Mas a Comissão de Ética do Senado aconselhou-o a não revelar na sobrecapa do livro o nome do senador para quem trabalhava, John Kerry, a fim de evitar a impressão de que usava sua posição para ganhos comerciais.

A restrição prejudicou sua capacidade de promover o livro. De fato, quando uma livraria de Washington identificou inadvertidamente a posição de McKean numa propaganda, ele teve de cancelar sua visita ao local. Uma vitória bem pequena, supõe-se, para a reputação da capital.