Título: Para brasileiros, Bel Air é o cartão de visitas
Autor: José Maria Mayrink
Fonte: O Estado de São Paulo, 15/01/2006, Internacional, p. A16

Tropas querem repetir o sucesso da ação militar na favela em outras áreas da capital

PORTO PRÍNCIPE

Do alto do Forte Nacional, numa colina que domina todo o centro da capital, o destacamento brasileiro da Força de Paz das Nações Unidas controla o porto e o casario de Bel Air, uma favela de ruas tortuosas e mal pavimentadas, a 500 metros do palácio presidencial. Bel Air era, ao lado de Cité Soleil e Carrefour, uma das áreas mais violentas de Porto Príncipe até a tomada do forte em março do ano passado, quando os brasileiros expulsaram as gangues de bandidos e traficantes que atiravam dali contra as patrulhas dos capacetes azuis.

Até então, as tropas só entravam em Bel Air com a proteção de blindados Urutu, com fuzis e metralhadoras apontados para os tetos e janelas dos sobrados. Nem os moradores do lugar se aventuravam a sair de casa depois de escurecer, porque sempre havia tiroteios, entre as gangues ou com a polícia.

"Agora isso aqui está uma beleza", disse na terça-feira o tenente-coronel Cunha Mattos, chefe do serviço de imprensa do Batalhão Haiti, percorrendo a pé três quarteirões da Rua Mariela, um dos pontos mais movimentados do bairro. Numa esquina, o tenente Barroso Magno, do 5.º Batalhão de Infantaria Leve de Lorena, conversa com um grupo de crianças.

O tenente, que faz hoje um ano de casado e não esconde a saudade da família, é o comandante de um posto de observação no terraço de uma casa que os chimeres, uma das gangues, ocupavam até 14 de julho, aniversário da Queda da Bastilha, quando os brasileiros conseguiram expulsá-los de lá. Foi aí que os moradores puderam ter alguma tranqüilidade.

"Os brasileiros protegem a gente, mas a ONU tem de fazer mais por Bel Air, pois aqui a gente não tem água, luz, esgoto e, principalmente, comida", queixa-se o técnico em informática Jean Marye, uma das poucas pessoas a falar francês no bairro.

O crioulo, segunda língua oficial do país, está em todas as bocas, nas placas e até nos cartazes distribuídos pela Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah).

Falta principalmente comida. "Não comi nada ainda", disse Saintilmé Saint Jacques, outro técnico de informática, ao lado de bancas de frutas, legumes e carne de frango expostos em mesas imundas cobertas de moscas. "A gente come até terra para enganar a fome", acrescentou ele, apalpando uma torta de argila ressecada no forno, "prato secular dos haitianos".

"Bel Air é hoje o que Cité Militaire será amanhã", promete o tenente-coronel Cunha Mattos, referindo-se a outro bairro sob controle dos brasileiros, na região de Cité Soleil, área ainda sob domínio das gangues, embora cercada pelas tropas da Jordânia. Os brasileiros esperam conquistar os moradores de Cité Militaire como conquistaram os de Bel Air - com uma presença firme, mas amiga, distribuindo cestas básicas, prestando atendimento médico e limpando as ruas. Por enquanto, a situação ainda é muito complicada em Cité Militaire.

Apesar de piedosas placas no comércio, com referências a Deus, Jesus, Maria, paz e amor, o clima nas ruas da região é de muita tensão, sobretudo à noite. "Aqui não tem hora para tiroteio", informou o tenente Giuseppe Pizzolatto, do 28.º Batalhão de Infantaria Leve, de Campinas, mostrando cápsulas de fuzil espalhadas pelo chão do posto de vigia.