Título: Evolução ao vivo e em tempo real
Autor: Fernando Reinach
Fonte: O Estado de São Paulo, 18/01/2006, Vida&, p. A16

O vírus da gripe aviária está se espalhando pelo planeta. Em cada país em que chega, mata centenas de milhares de aves, infecta dezenas de pessoas e mata metade delas. Por enquanto ainda parece incapaz de ser transmitido entre seres humanos. O vírus só infecta pessoas que entram em contacto direto com aves doentes. Mas isso pode mudar a qualquer momento. Vírus mutantes, potencialmente mais adaptados para se multiplicar em seres humanos, foram detectados na semana passada na Turquia. Quando o vírus se reproduz em uma grande população de aves, surgem inúmeros mutantes. A maioria desses mutantes reduz a capacidade do vírus se reproduzir e é imediatamente eliminada por seleção natural. Umas poucas mutações ¿melhoram¿ o vírus e se espalham rapidamente. É a evolução em ação. Isso teria pouca importância prática para nós humanos se o vírus não fosse capaz de infectar células de nosso sistema respiratório. Mas ele é capaz de infectar pessoas e, quando isso acontece, essas pessoas servem como campo de teste para os mutantes.

Caso o mutante seja capaz de se reproduzir de maneira eficaz em nosso sistema respiratório, ele representa um perigo e pode ser o primeiro passo em direção ao surgimento de uma cepa capaz de ser transmitida de pessoa para pessoa. Para detectar esses mutantes, a Organização Mundial de Saúde (OMS) coleta, analisa e seqüencia o genoma do vírus encontrado em cada nova pessoa infectada.

Como conhecemos bem os vírus de gripe que atacam humanos, sabemos quais são as mutações necessárias para converter o vírus de aves em um vírus perigoso para humanos. Provavelmente são necessárias oito ou dez mutações para criar um vírus capaz de causar uma pandemia. Ao seqüenciar o vírus coletado em pessoas infectadas recentemente na Turquia, uma luz amarela acendeu na OMS: a primeira dessas mutações perigosas parece ter se espalhado da Ásia para a Europa.

Essa mutação é uma pequena alteração na proteína que o vírus utiliza para se ligar à superfície das células, uma espécie de âncora que permite que o vírus penetre na célula. A mutação já havia aparecido em um paciente em Hong Kong em 2003 e no Vietnã em 2005. Depois desapareceu. Agora reapareceu em diversos casos na Turquia.

O que se sabe é que essa mutação aumenta a afinidade do vírus por células humanas e diminui sua afinidade por células de aves e está presente em vírus que se espalham entre humanos. Entretanto, o mais preocupante é que essa mutação permite que o vírus se ancore em células da garganta e do nariz, enquanto a proteína do vírus original tem preferência pelas células do pulmão.

Como a maioria dos vírus de gripe humana infecta a garganta e o nariz, isso provavelmente significa que o vírus deu um primeiro passo em direção a se tornar capaz de saltar de humano para humano. Os cientistas acreditam que muitos outros passos ainda são necessários. Com sorte, o sistema montado pela OMS vai permitir que acompanhemos ao vivo e em cores a evolução desse patógeno à medida que se prepara para nos atacar. Só não vai dar tempo para detectar a última mutação. Quando ela ocorrer, saberemos, não porque ela foi seqüenciada pela OMS, mas porque a pandemia já terá começado.