Título: Onde está o risco?
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Fonte: O Estado de São Paulo, 15/01/2006, Notas & Informações, p. A3

Há algo misterioso nas previsões do mercado financeiro para 2006. A maior parte do quadro reflete otimismo: a inflação continuará em queda, a produção será maior que a de 2005, o superávit comercial crescerá, o peso da dívida pública será menor, o resultado fiscal será o programado pelo governo e a dívida pública pesará menos. Não faltarão dólares e a campanha eleitoral deverá transcorrer sem risco de especulação com o câmbio. Nessa paisagem de imensa tranqüilidade, no entanto, os juros básicos ainda serão 15% no fim do ano e a taxa real será superior a 10%. Como explicar uma combinação tão surpreendente? Quem faz a pergunta, noutros termos, é o secretário do Tesouro Nacional, Joaquim Levy, citado pela colunista Cláudia Safatle no jornal Valor. O mercado continua a apostar no conservadorismo da política monetária, mas o próprio Banco Central (BC), responsável pela fixação dos juros, não aponta riscos significativos em suas projeções para o ano. Como explicar os juros colossais - o adjetivo foi usado por Levy - previstos para o fim do ano? "Que diabo de aversão é essa e que risco é compatível com essa taxa?"

Ele enumera e descarta vários perigos possíveis, lembrando, de quebra, a redução do risco Brasil no mercado internacional. Mas pelo menos uma de suas interrogações vale uma reflexão mais alongada. "Você vê o BC apontando riscos iminentes na área fiscal?"

Riscos iminentes, não. Os técnicos do BC, tanto quanto os economistas do mercado financeiro, apostam no cumprimento da meta fiscal, um superávit primário, destinado ao pagamento de juros, equivalente a 4,25% do Produto Interno Bruto (PIB). Aqui cabe outra pergunta, não formulada, nessa conversa, pelo secretário do Tesouro: bastará esse resultado para garantir o equilíbrio fiscal e, num prazo razoável, para dar mais espaço ao crescimento econômico?

A resposta deve ser negativa, tanto no Ministério do Planejamento quanto no da Fazenda. Se não fosse assim, os ministros Paulo Bernardo e Antonio Palocci não teriam batalhado com tanta insistência por um programa de ajuste mais severo, destinado a equilibrar o orçamento, incluída a conta de juros, em poucos anos. Oficialmente eles foram derrotados, mas não devem ter mudado de opinião. Devem continuar acreditando na conveniência de um ajuste mais ambicioso, tal como justificado por estudos do Ipea.

Em segundo lugar, há o problema da estrutura das finanças públicas. Mesmo com o orçamento equilibrado, haveria pouquíssimo espaço para a ampliação do investimento governamental. Com tantas verbas vinculadas e tantos gastos obrigatórios, a chamada parte livre do orçamento federal fica entre 10% e 15% do dinheiro disponível. Mesmo a essa parcela o adjetivo "livre" é mal aplicado, porque é preciso destinar uma fração dessas verbas a despesas de manutenção do governo.

Se o equilíbrio fiscal for alcançado, no entanto, será difícil mantê-lo, por causa da estrutura orçamentária muito ruim, sacramentada pela Constituição de 1988 e agravada por legislação posterior. Com essa estrutura, as despesas de custeio tendem a crescer automaticamente, ano a ano, de acordo com a evolução da receita, ou, no caso dos gastos com saúde, segundo a evolução do PIB per capita.

Nessas condições, o investimento tende a ser comprimido e, no limite, impossibilitado, enquanto os gastos com manutenção se expandem com dinamismo próprio. Essa tendência é reforçada pela expansão da folha salarial e das despesas com a Previdência do funcionalismo. Esses dados levam a mais uma inevitável pergunta. Enquanto não se enfrentar, para valer, o problema da estrutura orçamentária, qual será a redução possível dos juros reais ?

Que os juros atuais sejam muito altos e haja espaço para uma boa redução, durante este ano, parece fora de dúvida. Quanto a esse ponto, não há como discordar do secretário Joaquim Levy. Mas, para o Brasil ter juros tão baixos quanto os de países competitivos, não bastará o BC cortar a taxa básica. O problema realmente importante, a longo prazo, não é a política monetária, mas a coleção de distorções fiscais. Algumas, gravíssimas, foram corrigidas no final dos anos 80 e ao longo dos 90. Mas é preciso completar o trabalho, como mostra Maílson da Nóbrega em seu livro O Futuro Chegou. Com um pouco menos de otimismo diríamos que está aí, ao alcance de um próximo governo que tenha competência para entrar nele.