Título: A verdade num desabafo
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 15/01/2006, Notas & Informações, p. A3

Certas verdades notórias e incontestáveis às vezes precisam de grande dose de irritação como motivação para serem proferidas pela via do desabafo. Este é, precisamente, o caso da surpreendente reação do presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), o antropólogo Mércio Pereira Gomes, ante as críticas e acusações - divulgadas em todo o mundo - da Anistia Internacional, sobre a situação dos índios no Brasil. Com base em informações passadas pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a organização não-governamental que mais interfere (ou se intromete) na questão da demarcação das terras indígenas no Brasil, aquela entidade internacional denunciou que 38 ativistas indígenas teriam sido assassinados no País, em 2005, o que significaria o índice mais elevado dos últimos 11 anos.

Foi reagindo a essa denúncia grave que, pela primeira vez, o dirigente da instituição governamental destinada à proteção dos índios confirmou o que há muito é de pleno conhecimento da opinião pública e tem sido tema de inúmeros editoriais nossos: as reivindicações pela demarcação de novas terras e ampliação das reservas destinadas aos índios ultrapassam os limites aceitáveis, porquanto a população indígena já detém áreas exclusivas que correspondem a 12,5% do território nacional. Para se ter idéia dessa enormidade basta lembrar que se trata de uma área de cerca de 1 milhão de quilômetros quadrados, semelhante à da Alemanha, França e Itália juntas, destinada a 450 mil índios - em um país com população de 185 milhões de pessoas.

É verdade que, contrariando todos os prognósticos de evolução demográfica de populações autóctones, que tendem a diminuir substancialmente e na melhor das hipóteses a se manter, quando inseridas nos Estados nacionais contemporâneos, as populações indígenas brasileiras têm crescido em altos porcentuais, como atestam os dados do IBGE, que já comentamos em editorial. Em uma década - de 1991 a 2000 - enquanto a população brasileira cresceu à média anual de 1,6%, a indígena saltou à média anual de 10,8% - quase sete vezes mais, portanto. E nada indica que essa tendência tenha se reduzido nos últimos cinco anos - antes, pelo contrário.

Verdade é que a saudável superação do preconceito - posto que a etnia indígena, antes negada por muitos que a ela pertencem, passou a ser invocada com orgulho - tem contribuído para a quantidade crescente de índios no País. Pode-se até dizer que, com a grande elevação de status - em parte decorrente de boa soma de privilégios -, a condição de índio, no Brasil, se tornou uma espécie de griffe bem-sucedida e desejável (a ponto de até poder atrair caça-dotes...). É de se entender, pois, esse inusitado aumento de população. Mas, para uma entidade como o Cimi - vinculada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil -, o que mais interessa é mostrar ao mundo a pior situação vivida pelos nossos índios, pois é assim que angaria recursos externos (quando não internos) para sua atuante sobrevivência.

Como não poderia deixar de ser, o Cimi contestou com energia as declarações do presidente da Funai - e, de resto, o governo Lula -, pois são do vice-presidente daquela ONG estas palavras: "Isso revela o atrelamento de Mércio Gomes e do governo Lula ao agronegócio e às antigas oligarquias rurais do País." Um exagero, sem dúvida. Da mesma forma exagerada foi a informação da morte de 38 "ativistas indígenas", quando, na verdade, pelo menos metade desse número se refere a mortes causadas por disputas entre os índios, na maior parte das vezes em estado de embriaguez. Mas, deixando-se de lado a "briga" Cimi vs. Funai, que é de longa data e muitos governos, importa mais reter a questão da "falta de limites" no processo reivindicatório, pela demarcação de terras indígenas. Neste sentido, o presidente da Funai chega a sugerir que tais limites venham a ser fixados pelo Supremo Tribunal Federal. Que se estabeleçam, pois, estes limites - seja pela via legal, administrativa ou judicial -, pois não há Estado democrático de Direito que se mantenha com quistos extranacionais crescentes em sua base territorial.