Título: Questões disputadas
Autor: Gilberto de Mello Kujawski
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/01/2006, Espaço Aberto, p. A2

Dentre as questões controvertidas na opinião pública, sobre as quais não há certeza nem unanimidade, destacam-se quatro: Primeira: Lula será ou não candidato à reeleição?

Nossa posição é clara e pode ser resumida como segue. Número um: será bom para o País que Lula concorra à próxima eleição. Número dois: será melhor ainda para o País que Lula perca a eleição.

É bom que Lula seja candidato para bloquear a candidatura de certos políticos trêfegos que correm por fora, como Garotinho, com sua hipocrisia evangélica, César Maia, prima-dona da cena política, Ciro Gomes, glutão libidinoso do poder, e Nelson Jobim, que quer caçar o poder a laço, do alto de sua arrogância. A política não tolera o vácuo. Na falta de Lula, seu lugar será ocupado, fatalmente, por outro demagogo. E será ainda melhor que Lula venha a ser derrotado fragorosamente para não repetir o fiasco e o descalabro de sua gestão atual, sem forma nem figura de governo. Sem falar nas denúncias comprovadas de caixa 2 e de corrupção; só a turma do "me engana que eu gosto" pode negar a falência múltipla da gestão lulista, patente em setores essenciais, tais como: saneamento básico, habitação popular, energia, transporte (deterioração de estradas e portos), segurança, saúde e educação.

Para uma visão impressionista (que vale por muitas pedantes análises acadêmicas), o que falta no governo Lula é ritmo. Como a dança, a música, a poesia, a política tem que ter ritmo para arrebatar o País. J.F. Kennedy tinha ritmo trepidante, como também Nixon e Ronald Reagan. No Brasil, JK governou em ritmo galopante, e Carlos Lacerda marcou a Guanabara com seu padrão rítmico característico, meio carioca, meio udenista. FHC ensaiou certo ritmo, meio parnasiano, mas teve a má sorte de perder logo de início seu principal "animador", o empresário Sérgio Motta. O ritmo está ligado à aceleração. Lula não tem ritmo porque não tem aceleração, e não tem aceleração porque não tem direção (projeto). Num país de tantos ritmos como o nosso, o governo Lula é disrítmico e sincopado; desconjuntado, não sabe sair nem aonde chegar. Lula pode passar à História como o presidente remendão (tapa-buraco).

Outra questão disputada: José Dirceu foi cassado sem provas, injustamente, ou deu causa à sua punição? José Dirceu é personalidade singular, singularíssima, digna de estudo. Não é homem de idéias. Foi capaz de dar entrevista de hora e meia (Roda Viva) sem dizer nada inteligente ou sequer interessante. Homem de mando, isso sim, da cabeça aos pés. Gosta de se impor e dominar todas as situações. Aparenta um bom humor permanente, inalterável, sob o qual se esconde um temperamento reservado ao extremo, cheio de segredos que não revela a ninguém, mesmo se interrogado sob tortura. Estoicismo na adversidade e férrea força de vontade. Em Betharram, cidadezinha do sul da França, passou as festas de fim de ano como hóspede de Paulo Coelho e foi à igreja local encasacado e enchapelado, sob frio rigoroso (o homem com seus segredos), cumprir a via-crúcis, o calvário de Cristo. "Parou em 13 das estações, representadas por capelas - e terminou num cemitério. Agnóstico desde os 13 anos, rezou" (Mônica Bergamo, Folha de S. Paulo, 3/1). Não, não duvidemos da sinceridade de Zé Dirceu quando ele conversa com Deus. Só é bom não esquecer que, se preciso, ele conversa também com o demônio. Assim é José Dirceu, oscilando entre a reserva extrema e a pantomima. Toda essa comédia de inocência que representou na igreja de Betharram não convence. Zé Dirceu lembra aquele cidadão que chegava em casa e surrava a mulher todos os dias. "Eu não sei por que bato, mas ela sabe por que está apanhando." Os deputados que o cassaram podem não saber direito por que o fizeram. Mas ele, Dirceu, sabe muito bem por que foi cassado. Só que jamais revelará a ninguém o motivo.

Terceira questão: Alckmin ou Serra? Falso dilema. A questão já está resolvida mesmo antes de ser formulada. Assim como o Brasil precisa de um bom presidente, São Paulo clamava por um bom prefeito, sério, operoso, realizador. E o bom prefeito, José Serra, deve ficar onde está, sem quebrar a promessa formalizada de não deixar o cargo para concorrer a outra eleição. Serra, aquele moço tímido e introvertido, como descrito por Danuza Leão em seu livro de memórias, transformou-se num vulcão em política, estilo trator, tiro de canhão. Geraldo Alckmin é diferente: dorme na pontaria sem o mínimo alarde e, quando dispara, acerta na mosca. Serra, personalidade forte, tem o defeito de suas qualidades: é centralizador e individualista. Alckmin mostra mais capacidade de diálogo e articulação. Na recente entrevista no Roda Viva, Geraldo Alckmin desmentiu a versão boboca de que seria "tímido" e irresoluto. Não deixou pergunta sem resposta, argumentando com solidez e desembaraço e desmontando com classe as ciladas armadas pelos jornalistas. Com dois meses de TV conquistará o eleitorado.

Quarta questão: Ariel Sharon. Por menos simpatia que se tenha pelo primeiro-ministro israelense, causa revolta a reação de certos setores do mundo islâmico, festejando nas ruas sua agonia. Atitude diferente foi a do pensador espanhol Julián Marías, morto em dezembro, quando do prolongado coma do ditador Francisco Franco. Marías, liberal e democrata, foi a vida inteira perseguido encarniçadamente por Franco, passando até por risco de execução sumária. Pois bem: às vésperas da morte de Franco, quando na Espanha muitos inimigos festejavam ruidosamente seu fim, eis o que escreve Marías em suas Memórias: "Não é fácil alegrar-se com a morte de um homem, menos ainda depois de uma longa e penosa agonia. É sempre algo sério, e assim foi vivido pela maioria dos espanhóis, inclusive pelos que o haviam sentido como inimigo e padeceram por sua causa." Lição de grandeza moral, pena que ouvida por tão poucos.