Título: Nitroglicerina pura
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/01/2006, Notas e Informações, p. A3

Nunca, desde o início dos trabalhos das três CPIs que investigam as denúncias de corrupção no governo Lula e, principalmente, no Partido dos Trabalhadores, o presidente da República foi acusado tão frontalmente quanto anteontem, no depoimento do ex-petista Paulo de Tarso Venceslau à CPI dos Bingos. Expulso do partido em 1998, por denunciar o peculato cometido na prefeitura de São José dos Campos, da qual era secretário das Finanças, em benefício do compadre de Lula, Roberto Teixeira, o economista e ex-guerrilheiro confirmou que desde 1995 o líder máximo do Partido dos Trabalhadores não apenas sabia dos podres da agremiação como recomendou - ordenou, seria mais apropriado - que as administrações municipais petistas contratassem sem licitação a consultoria CPEM do compadre que lhe permitia morar de favor em um dos seus imóveis. A "empresa amiga", como a chamavam os companheiros, trabalhou para as prefeituras petistas de Agudos, Diadema, Ipatinga, Piracicaba, Santos e - sintomaticamente - Santo André. Cobrava comissão de 20% sobre os repasses do ICMS que esses municípios conseguiam receber a mais, graças às informações levantadas pela CPEM sobre o montante arrecadado no Estado. A empresa, acusou Paulo de Tarso, usava "notas falsas e rasuradas" para incrementar o seu ganho. Em 1994, Teixeira ajudou a bancar a campanha nacional do PT. No ano seguinte, o então secretário municipal em São José dos Campos mandou a Lula carta registrada em cartório na qual relatava como funcionava o esquema fraudulento, que incluía o caixa 2, e pedia ao então presidente do PT medidas para acabar com o esquema. Entregou em mãos cópias da carta para uma dezena de petistas estrelados, entre os quais Aloizio Mercadante - que ao ler a cópia declarou: "Isto é glicerina pura" -, Eduardo Suplicy, José Genoino, Arlindo Chinaglia, Gilberto Carvalho e Paulo Okamotto.

Nenhum deles teve a decência elementar de tomar alguma iniciativa em face de tamanha denúncia. Pudera. Na época, Paulo de Tarso ouviu do mentor religioso de Lula, Frei Betto, com todas as letras: "Se o Lula souber que alguém está conversando com você, ele jura que aquela pessoa vai ser decapitada do partido." Como aconteceu com o denunciante: revoltado com a complacência de todos que imaginava éticos, a começar de Lula, evidentemente, deu uma histórica entrevista ao repórter Luiz Maklouf Carvalho, publicada no Jornal da Tarde em 14 de março de 1998. O Partido dos Trabalhadores designou um júri de notáveis - os juristas Hélio Bicudo e José Eduardo Cardozo e o economista Paul Singer - para apurar se a denúncia de Tarso era ou não verdadeira. Era, foi a conclusão do júri que pediu providências da direção do partido para punir os culpados. O único punido, no entanto, foi Paulo de Tarso, expulso da legenda. Em entrevista recente à Veja, Bicudo referendou as acusações do "decapitado".

Por sua vez, a deputada Angela Guadagnin, prefeita de São José dos Campos no tempo de Tarso, confirmou outra denúncia dele: a de que o atual presidente do Sebrae e amigo pessoal de Lula, Paulo Okamotto, passava o chapéu entre empresas contratadas por prefeituras petistas para levantar doações como os "recursos não contabilizados" tornados célebres pelo ex-tesoureiro do partido Delúbio Soares. "Conhecia-se o esquema de arrecadação paralela há muito tempo, desde 1993", disse Angela na terça-feira. Depois disso, pode-se até dizer, em um assomo de condescendência, que o Partido dos Trabalhadores sujava as mãos por uma causa justa. Só não se pode dizer que o nume tutelar do partido, Luiz Inácio Lula da Silva, desconhecia ou não tenha incentivado tais maracutaias.

Salvo um terremoto político, Lula está imune a um processo de impeachment. Numa hipótese ainda demasiado remota, ele poderá desistir da reeleição - "no próximo ano já não estarei mais aqui", disse anteontem a reitores de universidades federais. Candidato, poderá ser derrotado. Mas uma coisa ficou definitivamente acima de qualquer dúvida: Lula é o principal culpado pelo descarrilamento ético do partido que deve a ele, mais do que a ninguém, a sua existência. E, como tal, não escapará à condenação do tribunal da História. Este, se não antes disso o eleitorado, tampouco perdoará os grão-petistas que vivem a desfilar a sua integridade inconsútil. Ela está rota pela cumplicidade e o cinismo.