Título: O Brasil e a não-proliferação
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/01/2006, Notas e Informações, p. A3

O adiamento da inauguração, pelo presidente da República, da fábrica de enriquecimento de urânio de Resende pode ter decepcionado os técnicos e diretores das Indústrias Nucleares do Brasil (INB), mas decerto evita que a entrada formal do Brasil no restrito clube de países que têm capacidade para produzir combustível nuclear em escala industrial se dê em momento inoportuno. Desde o final da década de 1980 o Brasil é um dos nove países do mundo que têm capacidade para enriquecer urânio. Durante mais de duas décadas, essa tecnologia foi desenvolvida e apurada em instalações piloto. Só recentemente o governo decidiu enriquecer urânio em escala industrial, para abastecer as usinas nucleoelétricas de Angra, numa fábrica da INB que deveria ter sido inaugurada, na terça-feira, pelo presidente da República.

A entrada em operação dessa fábrica tem gerado, no exterior, uma polêmica que afeta a imagem do Brasil. Há dois anos, quando os técnicos da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) se preparavam para fazer a inspeção de homologação das instalações, especialistas e organizações não-governamentais que defendem a não-proliferação nuclear promoveram um grande movimento de opinião para que o Brasil renunciasse voluntariamente a seu programa de enriquecimento. Na época, os governos dos Estados Unidos e dos principais países da Europa estavam às voltas com os programas clandestinos de enriquecimento do Irã e da Coréia do Norte. Como a tecnologia de enriquecimento do urânio pode ser empregada tanto para fins pacíficos como para produzir o material físsil de uma bomba atômica, as atividades feitas à margem das inspeções e das salvaguardas da AIEA foram consideradas indícios seguros de que aqueles dois países pretendiam tornar-se potências nucleares.

Não era o caso do Brasil, que está sujeito às salvaguardas do Acordo Quadripartite e dos tratados de Tlatelco e de Não-Proliferação (TNP). Mas pretendeu-se que o Brasil desse um exemplo ao mundo, abdicando de sua capacidade de enriquecer o combustível. Para complicar o quadro, o governo brasileiro reagiu mal à insistência da AIEA para que o País assinasse um protocolo adicional ao TNP - documento que permite a realização de inspeções sem aviso prévio e de natureza intrusiva. Com isso, o Brasil passou a ser visto, em certos setores, como um país propenso à proliferação e, portanto, potencialmente perigoso. O mal-estar só foi dissipado depois que o então secretário de Estado Colin Powell declarou que o Brasil "é parte da solução e não do problema" e a AIEA acertou os termos da inspeção em Resende.

Agora, às vésperas da inauguração frustrada, França, Alemanha e Grã-Bretanha estão pedindo à AIEA que comunique ao Conselho de Segurança da ONU que o Irã voltou a violar os termos do TNP, estando, portanto, sujeito a sanções. Na semana passada, a secretária de Estado Condoleezza Rice pediu ao chanceler Celso Amorim o apoio do Brasil - que integra a Junta de Governadores da AIEA - à proposta européia. Ao que tudo indica, o Brasil não fará objeções à proposta, mas não apoiará o envio da questão ao Conselho de Segurança. Essa abstenção poderá produzir o efeito contrário ao desejado, que é demonstrar as diferenças entre os programas brasileiro e iraniano. De fato, o brasileiro é feito às claras, com fins exclusivamente pacíficos, e o iraniano foi feito na clandestinidade, em violação ao TNP. Diante disso, uma abstenção dificilmente será vista como neutralidade.

É hora de o Brasil mudar sua política nesse setor. Posições ambíguas não condizem com o que estabelecem a Constituição e os tratados assinados pelo governo brasileiro e apenas refletem o irrealismo de alguns setores inspirados por um nacionalismo equivocado, que ainda acreditam que o Brasil só será uma grande potência se tiver a bomba. A volta às idéias do Brasil Grande do general Geisel só traria ao País o isolamento e a hostilidade internacionais.

O Brasil precisa, isso sim, aperfeiçoar os mecanismos de controle da atividade nuclear, tanto os da Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle como os da AIEA, assinando o protocolo adicional. Nada disso impediria o uso pacífico da energia nuclear e muito menos vulneraria a soberania nacional.