Título: A guerra de amanhã vista pelo retrovisor
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Fonte: O Estado de São Paulo, 19/01/2006, Internacional, p. A12

Será que estamos vivendo em meio às origens da próxima guerra mundial? Certamente é fácil imaginar como um futuro historiador lidaria com os recentes acontecimentos no Oriente Médio: A cada ano que passava depois da virada do século, a instabilidade na região do Golfo aumentava. No início de 2006, quase todos os ingredientes combustíveis para um conflito ¿ numa escala bem maior do que nas guerras de 1991 e 2003 ¿ estavam presentes. A primeira causa subjacente da guerra, prosseguiria o historiador, foi, naturalmente, o aumento na importância relativa da região como uma fonte de petróleo. O restante dos suprimentos mundiais de petróleo mundiais estava sendo exaurido rapidamente, enquanto o espantoso crescimento das economias asiáticas tinha provocado uma enorme alta na demanda global.

Uma segunda causa da guerra foi demográfica. Enquanto na década de 1970, a fertilidade européia tinha sido abaixo da taxa natural de substituição, o declínio no mundo islâmico havia sido bem menor. No Irã, o conservadorismo social da Revolução de 1979 aliado à alta taxa de mortalidade da guerra entre Irã e Iraque e ao subseqüente alto índice de nascimentos produziram na primeira década deste novo século um extraordinário excedente de homens jovens. Em 1995, mais de dois quintos da população do Irã estavam com 14 anos ou menos. Essa foi a geração que estava pronta para lutar em 2007.

A terceira e talvez mais importante condição prévia para a guerra foi cultural. Desde 1979, não apenas o Irã mais a maior parte do mundo muçulmano tinha sido tomado por uma onda de fervor religioso. Embora poucos países tenham seguido o exemplo o Irã na estrada para a teocracia, as dinastias feudais ou os militares poderosos que dominavam a política islâmica desde a década de 1950 sofreram uma intensa pressão religiosa. O coquetel ideológico que produziu o islamismo foi tão forte quanto as ideologias que o Ocidente tinha produzido no século anterior ¿ o comunismo e o fascismo. O islamismo era antiocidente, anticapitalista e anti-semita. Um momento marcante foi o ataque intempestivo do presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad contra Israel, em dezembro de 2005, quando ele considerou o Holocausto um `mito¿. O Estado de Israel era uma `mancha vergonhosa¿, havia declarado ele anteriormente, que devia ser `varrida do mapa¿.

Antes de 2007, os islâmicos não tinham encontrado nenhuma outra alternativa além de empreender a guerra contra seus inimigos por meio do terrorismo. Da Faixa de Gaza a Manhattan, o herói de 2001 foi o homem bomba. Porém, Ahmadinejad, um veterano da guerra entre Irã e Iraque, ansiava por uma arma mais potente que os explosivos amarrados ao corpo. Ele quis dar ao Irã o tipo de poder que a Coréia do Norte já exercia no leste da Ásia ¿ o poder de desafiar os EUA. O poder de eliminar o mais próximo aliado regional dos EUA.

Sob outras circunstâncias, não teria sido difícil interceptar o programa de armas nucleares de Ahmadinejad. Os israelenses já tinham se mostrado capazes de ataques aéreos preventivos contra as instalações nucleares do Iraque em 1981. Comentaristas neoconservadores haviam tentado convencer o presidente Bush a promover ataques semelhantes contra as instalações do Irã no decorrer de 2006.

Mas o presidente foi aconselhado por sua secretária de Estado, Condoleezza Rice, a optar pela diplomacia. Os americanos não queriam aumentar seu comprometimento militar no exterior; queriam reduzi-lo. Os europeus não queriam ouvir falar que o Irã estava prestes a construir sua própria arma de destruição em massa. Mesmo que Ahmadinejad tivesse transmitido pela CNN ao vivo um teste nuclear, eles teriam dito que era um truque da CIA.

Assim a história se repetiu. Como aconteceu na década de 1930, um demagogo anti-semita descumpriu as obrigações de seu país com o tratado e armou-se para a guerra. Tendo primeiro tentado apaziguar os ânimos oferecendo incentivos econômicos aos iranianos para que desistissem, o Ocidente apelou para a Agência Internacional de Energia Atômica e ao Conselho de Segurança da ONU. Porém, devido ao veto da China, a ONU não produziu nada a não ser resoluções vazias e sanções ineficazes.

Somente um homem poderia ter fortalecido a determinação do presidente Bush na crise. Mas Ariel Sharon fora acometido de grave derrame exatamente no momento em que a crise com o Irã chegou ao auge. Com Israel sem um líder, Ahmadinejad pôde fazer o que queria.

Também como na década de 1930, o Ocidente entregou-se ao auto-engano. Talvez, disseram alguns, Ahmadinejad estivesse apenas ameaçando porque sua própria posição no âmbito doméstico era muito fraca. Talvez seus rivais políticos no clero iraniano estivessem a ponto de se livrar dele. As pessoas cruzaram os dedos, esperando por uma mudança de regime promovida internamente em Teerã. Isso deu aos iranianos todo tempo que precisavam para produzir urânio enriquecido ao ponto de produzir armas em Natanz. O sonho da não-proliferação nuclear, já semiviolado por Israel, Paquistão e Índia, fora então irreparavelmente abalado. Logo Teerã tinha um míssil nuclear apontado para Tel-Aviv. E o novo governo israelense de Benjamin Netanyahu tinha um míssil apontado direto para Teerã.

A devastadora troca termonuclear de agosto de 2007 representou não apenas o fracasso da democracia, mas marcou também o fim da era do petróleo. Alguns chegaram a dizer que marcou o ocaso do Ocidente. Ainda assim o historiador se vê obrigado a perguntar se o verdadeiro significado da guerra de 2007 a 2011 foi promover uma revanche ao princípio do governo Bush de prevenção. Pois, se esse princípio tivesse sido mantido em 2006, as ambições nucleares do Irã poderiam ter sido interceptadas a um custo mínimo. E então ¿ embora seja difícil imaginar como ¿ a Grande Guerra do Golfo poderia nunca ter acontecido.