Título: Chirac ameaça com a bomba
Autor: Gilles Lapouge
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/01/2006, Internacional, p. A14

Presidente diz que a França usará arma nuclear contra país que servir de base para ataque

PARIS - O presidente francês, Jacques Chirac, advertiu ontem que seu país se reserva o direito de usar armas nucleares, caso seja alvo de ataques terroristas. Que fim levou o armamento nuclear francês? Não se ouvia falar dele havia alguns anos - desde 2001. Alguns se perguntavam se, levando-se em conta o desaparecimento do perigo soviético, a bomba francesa não seria inútil, sem sentido. Bem, não. E Chirac, em pessoa, nos anuncia isso.

O discurso de Chirac é interessante. Ele é claro ao dizer que a França no futuro terá de enfrentar mais provavelmente guerras "assimétricas" do que guerras convencionais - ou, então, ameaças terroristas. Nessas condições, por que então conservar as armas nucleares do tempo da guerra fria, armas dispendiosas aliás, que custam 3 bilhões por ano?

A resposta é dupla. Primeiro, as ameaças tradicionais não desapareceram, mas, hoje se assiste, sobretudo, ao surgimento de potências regionais muito agressivas, que possuem, ou esperam possuir, armas nucleares. Chirac manda um recado, portanto, a essas potências regionais: a França não hesitará em usar seu arsenal nuclear se for preciso.

Mas ele especifica. As armas nucleares poderiam ser empregadas em três casos: se os interesses vitais da França forem ameaçados; se abastecimentos estratégicos forem ameaçados; e, por último, se um país aliado da França precisar de ajuda.

Os alvos eventuais continuam vagos. É a regra. Entretanto, a partir do momento em que se fala em "abastecimento estratégico", pensa-se logo em recursos petrolíferos e nas importações de petróleo da França.

A referência feita por Chirac aos países aliados é novidade também. Na doutrina militar francesa, as armas nucleares poderiam ser utilizadas se o território europeu for alvo de ataques de destruição em massa. No discurso, Chirac falou não em "território europeu", mas, mais amplamente, em "países aliados." A nuance de Chirac acrescenta uma outra. Até aqui, durante os anos da guerra fria, a bomba nuclear tinha a missão de aniquilar as grandes cidades ou um país inteiro. Em seu discurso recente, Chirac modulou a doutrina. A arma nuclear, disse, poderia ser empregada com mais discernimento. Por exemplo, em vez de aniquilar um país inteiro, ela poderia ser detonada para aniquilar os "centros de poder." Isso significa que os progressos tecnológicos permitem hoje dosar melhor o poder infernal da energia nuclear, de fazer bombas mais precisas, menos devastadoras - por exemplo, com cargas de apenas 150 quilotons.

É de se notar a coincidência entre o discurso de Chirac e os gestos do novo senhor do Irã, o arrebatado e assustador Mahmud Ahmadinejad. Esse personagem exaltado e messiânico é suspeito de querer dotar seu país de armas nucleares. E tem expressado, em muitas ocasiões, seu desejo de aniquilar o Estado de Israel.

A renovada agressividade do Irã está demolindo o equilíbrio no Oriente Médio. De um lado, tem-se a Síria, próxima do Irã e também suspeita, pelo Ocidente, de favorecer o terrorismo islâmico. De outro, os demais países do Golfo que também estão infectados pelo islamismo radical, apesar de aliados dos EUA, porque é para os americanos que eles vendem seu petróleo.

O temor dos Estados do Golfo, e, especialmente, do mais poderoso deles, a Arábia Saudita, seria que os EUA bombardeassem as instalações nucleares do Irã. Haveria a possibilidade de o Irã dirigir sua resposta contra eles.

Não é por menos que os diplomatas do Golfo, particularmente da Arábia Saudita, andam agitados neste momento. A tese que eles defendem: caso o Irã se equipe com armas nucleares, isso vai pôr toda a região em perigo. Mas apontam como verdadeiro culpado não o Irã, mas Israel. Pois não foi Israel que saiu na frente na corrida da região pelas armas nucleares? O chefe da diplomacia saudita, Saud Al-Faiçal, declarava em 16 de janeiro à BBC de Londres: "O problema se deve ao fato de que toda exceção abre a porta para uma polêmica à qual não falta lógica: 'Por que para tal país sim e para o meu, não?" Ao autorizar Israel a se equipar com armamento nuclear, o Ocidente provocou desgastes e hoje sofre com a tentação de outros países de procurarem o mesmo.