Título: A Igreja e o MST
Autor: Denis Lerrer Rosenfield
Fonte: O Estado de São Paulo, 23/01/2006, Espaço Aberto, p. A2

A Igreja e o MST têm ligações políticas e teológicas que se fazem particularmente presentes nas ações da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e nas atividades de ordens religiosas que se põem a serviço do que é considerado como uma verdadeira "causa". Muitos dos impasses observados na questão da reforma agrária no Brasil passam por uma correta compreensão de quais são as posições teóricas aí em jogo. Há linguagens políticas incompatíveis que só aparentemente estabelecem um diálogo. Para se ver mais de perto a posição doutrinária desse setor da Igreja, é extremamente proveitoso consultar um livro de Cantos, Cantando com a Mãe Terra, Porto Alegre, 2003. Publicação da Comissão Pastoral da Terra - CPT/RS e Comunidade Padre Josimo dos Freis Capuchinhos e Franciscanos, de Tupanciretã (RS). As formulações presentes nestes cantos refletem todo um posicionamento que mistura religião com política. Em termos filosóficos, estamos diante de uma forma do teológico-político que parte do princípio de que o absoluto, o reino de Deus, pode se realizar na Terra, sendo-lhe, para isto, necessário um instrumento que leve a cabo essa proposta de absolutização da política, tendo na CPT e no MST os seus veículos. O problema consiste na crença de que seja possível a realização sobre a Terra de uma comunidade humana perfeita, receba ela o nome de reino de Deus, de socialismo ou de comunismo.

O Canto 222 se intitula Companheiros de Guevara, numa clara afinidade de posições, pois "(...) então ouviremos da história o grito de glória/da nossa utopia". O título desse canto já é suficientemente eloqüente por louvar Guevara como se fosse um profeta e mártir da Igreja. Aliás, bizarra reverência religiosa de alguém que procurou, com seus companheiros, destruir a Igreja Católica em Cuba e em cujo embasamento teórico marxista reside a idéia de que a religião é uma forma de alienação da humanidade. "(...) grande será nosso espanto de ver o encanto/do bom comandante chegando na hora certa/com a voz desperta nossa rebeldia/companheiros de Guevara trilhando a estrada/por um novo dia". Guevara fica na memória daqueles que o veneram, pois, assim, ele sempre chegará a seu objetivo por intermédio dos que captaram e retransmitiram a sua mensagem, vivida como atual por todos os que fazem parte dessa comunidade político-religiosa. Quando o objetivo da CPT e do MST consiste na realização do reino de Deus ou no socialismo, toda política de atendimento a propostas que possibilitariam a melhoria de vida da população rural pobre é considerada insuficiente, porque sempre distante e infinitamente distante do reino de Deus ou da sociedade sem classes. Se o capitalismo é o pecado, qualquer política capitalista no campo brasileiro traz uma mácula originária, que só poderia ser apagada por uma revolução, uma espécie de redenção, que anunciaria, para o mundo, que uma nova humanidade é possível.

O Canto 215, ao louvar a ação dos "sem-terra", louva a "causa nobre da revolução". Ao derrubar as "cercas da morte", as delimitações da propriedade privada, a ação política ganha um contorno propriamente revolucionário, o de estabelecer uma outra forma de propriedade, a coletiva, que romperia com os padrões do capitalismo, estabelecendo uma sociedade socialista ou comunista. Eis por que, aliás, a CPT e o MST não lutam pela propriedade privada dos assentados, esses não possuindo a titularidade das terras, pois isso contrariaria uma concepção socialista baseada na propriedade coletiva como meta a ser alcançada.

O Canto 9: "Somos povo escolhido/e na fronte assinalado/com o nome do Senhor/que caminha ao nosso lado." A perspectiva bíblica é francamente afirmada, pois o "povo" do MST e da CPT é considerado como o "povo escolhido". O MST e a CPT colocam-se como os instrumentos de uma nova mensagem, de uma "nova Aliança", que conduziria a humanidade aos caminhos do Senhor. A palavra do MST/CPT é, então, considerada como uma forma de verdade absoluta que não daria lugar a contestações, legitimando, desde uma perspectiva teológica, invasões de terras, depredações, cárceres privados, formação de quadrilhas, uso generalizado da violência, que seriam tidos por instrumentos necessários de uma orientação teológico-política. Não haveria, sob essa ótica, nenhuma possibilidade de contestação dessa política num jogo democrático, pois a disparidade de posições estaria posta desde o início: uma representa o absoluto e as outras seriam meras formas relativas da política estatal ou partidária.

O Canto 24: "Quem rouba a terra, rouba a vida do pobre,/que necessita da terra para viver./A terra é vida para quem trabalha nela!/Roubar a terra é fazer o povo sofrer."

A noção de roubo de terra, na linguagem da CPT e do MST, significa toda e qualquer propriedade privada, pois essa nada mais é do que a delimitação de terras, que seriam originariamente coletivas. Deus teria criado o mundo segundo os princípios da propriedade coletiva. Essa seria conforme a "natureza", enquanto a privada seria "contra-natura". Ou seja, todo proprietário privado de terras, produtiva ou não, extensa ou não, seria um "ladrão", alguém que contraria as leis divinas. Segue-se, então, que os defensores da propriedade coletiva, os que derrubam cercas, agem segundo os desígnios da providência, procurando fazer com que a propriedade readquira o seu sentido originário. Invadir terras se torna, assim, algo moralmente justificável, pretendido e mesmo querido por Deus. Ladrões não são os que se apropriam da propriedade alheia, mas os que dela detêm títulos legais. Eis por que as invasões do MST e da CPT seriam, desde sempre, religiosamente justificáveis. As leis que regem a propriedade privada e o estado de direito seriam meros obstáculos interpostos no caminho da redenção.