Título: Seqüestros relâmpagos
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 23/01/2006, Notas e Informações, p. A3
A pós sucessivos pedidos do Ministério Público, o governo estadual baixou em agosto de 2004 uma portaria ordenando ao Infocrim, o banco de dados extraídos de ocorrências policiais, que passasse a classificar seqüestros relâmpagos como crime de extorsão mediante seqüestro e não como roubo, como ocorria até então. Ao mesmo tempo, o MP recomendou aos promotores que denunciassem os autores de seqüestro relâmpago como seqüestradores. Para os cidadãos comuns, não afeitos aos meandros do universo jurídico, essa mudança na classificação de um tipo crime que cada vez mais atinge a classe média pode parecer uma iniciativa meramente burocrática. Mas, do ponto de vista jurídico, a diferença de tipificação está no rigor e no alcance da punição prevista pela legislação penal. Se for denunciado, julgado e condenado por crime de roubo, o autor de um seqüestro relâmpago recebe uma pena que varia de 5 a 15 anos e, se tiver bom comportamento, após cumprir um sexto da condenação pode reivindicar a passagem para o regime semi-aberto.
Já se o autor de um seqüestro relâmpago for denunciado, julgado e condenado pelo crime de roubo e extorsão mediante seqüestro, a punição aplicada varia de 20 anos a 45 anos de prisão. Além disso, como a legislação penal desde o início da década de 90 considera o seqüestro um "crime hediondo", os seqüestradores não têm o direito às regalias e benefícios do chamado "regime de progressão da pena". Com essa mudança de classificação do seqüestro relâmpago nos boletins de ocorrência dos distritos policiais, o MP imaginou que, ao receber os inquéritos criminais, teria condições de ajudar a coibir a proliferação desse tipo de delito, pedindo punições mais rigorosas para seus autores.
No entanto, não foi isso o que aconteceu. Os levantamentos do MP mostram que, de um total de 1.704 boletins de ocorrência, entre janeiro de 2004 e novembro de 2005, apenas 127 resultaram em abertura de inquérito. É pouco, pois sem inquéritos conclusivos e sem provas coletadas pela polícia o MP simplesmente não tem como oferecer denúncias criminais à Justiça. "Não adianta a polícia só registrar o boletim de ocorrência como extorsão mediante seqüestro e não investigar", diz a promotora Tatiana Bicudo.
Em sua defesa, a polícia alega que, na maioria dos seqüestros relâmpagos, ela não tem por onde começar uma investigação. Como a vítima é surpreendida num cruzamento e muitas vezes não vê o rosto do seqüestrador, e como o sistema de filmagem dos caixas eletrônicos seria obsoleto, gravando imagens que não permitem identificação, a polícia não teria elementos para concluir um inquérito. Além disso, o Departamento de Investigações sobre Crime Organizado invoca um argumento de natureza legal para justificar a diferença entre o número de boletins de ocorrência e de inquéritos conclusivos, em matéria de seqüestro relâmpago.
Segundo ele, os distritos não têm outra saída a não ser cumprir o que determina a portaria do governo, registrando seqüestros relâmpagos como crime de extorsão mediante seqüestro. Investigar esses delitos, porém, é outra história. Alega, ainda, que a legislação estabelece que a extorsão mediante seqüestro envolve pelo menos três pessoas, a polícia não poderia, sob risco de ser acusada de abuso de autoridade, investigar como extorsão mediante seqüestro os seqüestros relâmpagos cometidos por uma ou duas pessoas. "O Código Penal prevê que, para ser extorsão mediante seqüestro, é preciso ter uma terceira pessoa, que vai sofrer a extorsão. Se não, é roubo", diz o delegado Godofredo Bittencourt. Não é isso, porém, o que diz o Código Penal, cujo artigo 158, @ 1º, limita-se a definir a extorsão praticada por duas ou mais pessoas como agravante.
Na realidade, a insistência na tese do roubo e o argumento de que a polícia não tem como converter todos os boletins de ocorrência sobre seqüestro relâmpago em inquéritos conclusivos dão a medida da incapacidade de ação conjunta das instituições encarregadas de promover a segurança pública e de assegurar o império da lei.