Título: Por que Kirchner sorri
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Fonte: O Estado de São Paulo, 20/01/2006, Notas e Informações, p. A3

O presidente argentino, Néstor Kirchner, tem motivos para estar satisfeito depois de sua primeira visita de Estado ao Brasil, encerrada ontem. Todos os seus principais objetivos foram alcançados ou, pelo menos, defendidos com competência. Conseguiu do presidente Luiz Inácio Lula da Silva a promessa de colaborar para a reindustrialização da Argentina. O governo brasileiro continua aceitando, em princípio, a criação de salvaguardas comerciais no Mercosul, com objeções apenas quanto a detalhes. Também aceita o adiamento do livre comércio de veículos entre os dois maiores países do bloco. Até os protestos de uruguaios e paraguaios contra o funcionamento do Mercosul foram aproveitados pelo visitante. Ele conseguiu usar sua tese das "assimetrias" para justificar o descontentamento dos sócios menores do bloco, realçados, nas últimas duas semanas, pela discussão, em Montevidéu, de um acordo comercial com os Estados Unidos. Enfim, aproveitou para consolidar, numa conversa com a participação do presidente Hugo Chávez, o compromisso trilateral de construção de um gasoduto entre Venezuela e Argentina.

Com resultados tão bons, não se pode estranhar o comportamento de Kirchner, insolitamente polido e bem-humorado. Talvez tenha sido essa a única novidade real na visita, embora seja preciso assinalar um detalhe: seu interesse em cumprir a agenda até o fim, para não perder o encontro com Chávez.

De qualquer maneira, uma vitória o governo brasileiro pode celebrar: desta vez não houve qualquer desfeita ao presidente Lula. Pelo contrário, só elogios. Terá sido por isso que o presidente brasileiro cedeu mais uma vez às pretensões de seu colega argentino? O enviado especial do jornal La Nación, de Buenos Aires, arrisca uma outra explicação: "A ameaça do Uruguai de negociar com os Estados Unidos por fora do Mercosul, inconformado com o tratamento recebido de seus sócios maiores, foi usada pela Argentina para mostrar ao Brasil onde poderia terminar o bloco, se o sócio com maior força não começasse a ser mais 'generoso'."

Segundo o jornalista, o presidente Lula preferiu suportar alguns aborrecimentos com os industriais paulistas a "ver o Mercosul em pedaços no último ano de seu mandato". Como prêmio, ganhou o elogio político de Kirchner e poderá usá-lo para "reconquistar setores desencantados de centro-esquerda".

Pode haver exagero nessa análise, mas num ponto é incontestável. O presidente Lula tem admitido a maior parte dos atos protecionistas de Buenos Aires. Tem abandonado os empresários brasileiros, forçados a negociar com os industriais argentinos protegidos por seu governo. Tem preferido o mau humor dos empresários locais ao risco de uma crise maior no Mercosul.

Só isso explica a disposição de Brasília de aceitar em princípio as salvaguardas, limitando-se a discutir prazos e procedimentos. Só isso pode explicar, também, a frase do ministro do Desenvolvimento, Luiz Furlan, registrada pelo jornal Valor: "Uma eventual barreira às importações brasileiras não pode ficar em níveis mais elevados do que para os países com os quais o Mercosul tem acordo." Em outras palavras: barreiras no Mercosul não podem ser maiores que a tarifa externa comum (TEC). A mera referência a essa hipótese deixa boquiaberto qualquer espectador normal.

Mas o presidente Lula, apesar do empenho em preservar o bloco, revela uma percepção estranha de como deve funcionar o Mercosul. Brasil e Argentina, disse, devem ser mais generosos com os sócios menores - "os irmãos mais pequenos", como ele os chamou.

Mas Uruguai e Paraguai não pedem generosidade. Reivindicam apenas um tratamento adequado. Recusam a posição de sócios de segunda classe enquanto os dois maiores discutem seus problemas.

Segundo o assessor da Presidência para Assuntos Internacionais, Marco Aurélio Garcia, o presidente uruguaio, Tabaré Vázquez, enviou "sinais tranqüilizadores" diretamente ao Palácio do Planalto, que ele interpretou como um desmentido da negociação de um acordo comercial com os Estados Unidos. Que não haja, ainda, a negociação é verdade. O resto é fruto de compreensível wishful thinking do assessor de Lula. Na melhor das hipóteses, pode ser um blefe. Mas o presidente Tabaré não deixou de ratificar o acordo de proteção de investimentos com os Estados Unidos - contra o discurso dos sócios maiores do Mercosul.