Título: A volubilidade do povo
Autor: Jarbas Passarinho
Fonte: O Estado de São Paulo, 24/01/2006, Espaço Aberto, p. A2

Em meio às explicações e queixas causadas pelo mensalão, uma me fez refletir. É de alguém cujo mandato pode vir a ser cassado. Disse ele que a culpa é do povo, na figura do eleitor, que esquece rápido. E o pior é que a imprensa também se esquece, ou melhor, à força de repetir o mesmo tipo de noticiário, abandona-o, buscando notícias novas. Eu incluiria nisso a sociedade civil. Cansa-se e acaba leniente. No caso das CPIs, o desinteresse foi aumentando a cada depoimento indevidamente demorado; os interrogadores, com as raras exceções do estilo, empolgavam-se e se exibiam, aproveitando a oportunidade de aparecer na mídia, principalmente nas TVs das duas Casas do Congresso. Entediado, impacienta-se o telespectador. Começa mais a deter-se nos erros crassos cometidos nas oitivas, agredindo a "última flor do Lácio, inculta e bela" dos versos de Bilac, do que nos testemunhos indesmentíveis, mas sem a prova. Bela, sim, a nossa língua; inculta, não. Agripino Grieco já dizia que Os Lusíadas, de Camões, foram amortalhados não na incultura do português, mas no seu desconhecimento no mundo da literatura. John Milton - acrescentava Grieco -, com seu famoso poema épico Paraíso Perdido, que por dois séculos foi leitura obrigatória dos britânicos, não teria tal destino se escrito na língua portuguesa.

O deputado Osmar Serraglio (PMDB-PR), ao afirmar a existência do mensalão em sua corajosa entrevista à revista Veja, disse bem: "Prova não é só documento", como parece exigir, cinicamente, quem protege os vendilhões de votos porque não passaram recibo da propina com firma reconhecida. Mesmo provas, o relator - um raro exemplo de integridade moral - diz que ainda poderiam ser obtidas se os requerimentos da CPI ao ministro da Justiça e à sra. Wanine Lima, sua subordinada, houvessem sido respondidos. Não o foram porque "ambos não parecem muito dispostos a colaborar", queixa-se o relator. Amargurado, conhece os truques antiéticos de muitos de seus colegas. Grave, porém, é quando são feitos pelo próprio ministro da Justiça e pela senhora a quem se refere o relator Osmar Serraglio, deixando sugerir que não respondem para melhor servir ao governo a que pertencem.

Cito ainda o bravo relator, ao tratar das ilicitudes de Duda Mendonça: "Que o presidente Lula tinha ciência, tinha. Só não posso dizer quanto ele sabia." Contesta a declaração do presidente Lula de não acreditar que tenha existido o mensalão. Para sustentar sua convicção de advogado, lista desde a confissão do tesoureiro do PT de haver distribuído dinheiro a deputados até as renúncias táticas de parlamentares e a coincidência dos repasses com a migração dos deputados para partidos governistas e as votações do interesse vital do governo. É difícil acreditar, insiste ele, na declaração do presidente de que não existiu o mensalão - e num "empréstimo que não é pago nem cobrado"...

Ademais, o tempo favoreceu os vendilhões do voto. O PT usou-os, mas não permitiu que enxovalhassem o seu puritanismo, que depois se mostrou uma farsa. Os vendidos ou operadores do mensalão iam ao Banco Rural ou, envergonhados, mandavam terceiros a ele. Inicialmente, surgiram as desculpas mais inverossímeis. Um disse que a esposa fora ao mesmo prédio do banco, daí a confusão da imprensa, mas para fazer uma consulta médica, espantosamente no valor de R$ 50 mil. Outro envolveu na patranha a própria esposa. Um terceiro, o dono do mais vultoso saque, expôs a secretária, que guarda um nome histórico: Anita Leocádia, homônima da filha de Prestes com Olga.

A multiplicação de CPIs ajudou a perturbar a averiguação dos ilícitos. De resto, segundo reportagem de jornal, o eminente advogado que é o ministro da Justiça teria instruído patronos dos criminosos a reconhecerem o crime eleitoral, mas nunca o mensalão. A CPI do Mensalão, engendrada pelos amigos do governo - que se opusera à abertura das outras -, cumpriu seu papel magistralmente ao concluir que não houve mensalão. Dela se queixa o honesto deputado Osmar Serraglio. Essa CPI, diz o deputado, é que teria os meios de incriminar os imorais. Não o fazendo, prejudica a apuração da verdade.

Os entendimentos dos indiciados auxiliaram o crime. O plenário da Câmara dos Deputados, movimentado em seus bastidores, absolveu por larga maioria um dos que receberam um dos maiores repasses de Marcos Valério. Simplesmente se defendeu dizendo que não embolsou o "dinheiro não contabilizado". Passou-o ao partido, o PTB. Como, agora, condenar o deputado Professor Luizinho (PT-SP), que se satisfez com R$ 20 mil? Ele mesmo argumentou: "Como aplicar a pena de morte em quem só furtou uma carteira?" O corporativismo, que estava acuado, comemorou seu restabelecimento e já se fala de "acordão" para livrar todos os incriminados.

Quando surgiram as primeiras provas da imoralidade, Lula fez saber que fora traído e que o PT deveria pagar pelos erros. Nem aparece o traidor (ou a malta traidora) nem o PT foi refundado, como queria Tarso Genro. Terminando o ano, as oposições forçaram uma convocação extraordinária, paga regiamente, com o fim de "não deixar esfriar a crise". A mídia mostrava os plenários plenos, mas de turistas. E os chargistas nunca tiveram tanta inspiração. José Dirceu, o indigitado chefe da gangue, chamada núcleo duro do partido, foi recebido com flores no PT de Berzoini. Negar com pertinácia saber o que ocorria acabou favorecendo o presidente Lula. É claro. Ele só se considera responsável pelas viagens (cinco voltas ao mundo, diz este jornal) e qualquer erro é da tripulação. Assim, parece, renasce o favoritismo para a reeleição. Todos merecemos isso. O povo somos nós.