Título: A farsa do não-candidato
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Fonte: O Estado de São Paulo, 24/01/2006, Notas e Informações, p. A3

O presidente Lula está dando um golpe na praça. O golpe consiste em dizer, como disse domingo em La Paz, pela enésima vez, que só decidirá se será candidato à reeleição "no limite" do prazo legal, isto é, em junho, enquanto faz campanha com apetite redobrado, a pretexto de colher o que teria plantado em três anos de governo, com um frenesi de aparições públicas escandalosamente eleitoreiras. Isso é golpe porque, não assumindo a candidatura, faz de conta que a sua presença nos palanques e a divulgação dos seus supostos feitos nos intervalos comerciais das televisões são atividades legítimas de um governante e sua não menos lícita prestação de contas ao povo. Tamanho é o despudor do presidente que, segundo o noticiário da imprensa, ele chegou a explicar ao governador petista do Acre, Jorge Viana que, se anunciasse já agora que pretende ficar mais quatro anos no Planalto, correria o risco de ser interpelado na Justiça por uso da máquina para fins eleitorais, que é o que vem fazendo sem descanso, desde a sua posse em 1º de janeiro de 2003. Outra coisa não foi o circo armado em torno do início da Operação Tapa-Buraco nas rodovias federais, utilizado para promover, por exemplo, a candidatura do ministro da articulação política Jaques Wagner ao governo da Bahia.

A desenvoltura com que o não-candidato trabalha por sua reeleição se manifesta em público e em privado. Na quinta-feira, o presidente fez o enésimo apelo ao PMDB para que desista de lançar candidatura própria e adira à sua, recebendo em troca o lugar de vice na chapa oficial. Dessa vez, não ficou apenas nas palavras: recorreu à máquina - em especial na pessoa da ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff. Munida de um projetor de transparências, ela fez desfilar o que seriam as incomparáveis realizações da gestão do chefe, num replay da exibição à equipe ministerial, na reunião de 19 de dezembro. Quis com isso o candidato-que-não-é persuadir os seus céticos interlocutores de que aderir será um bom negócio para o PMDB, o que ficará inequívoco à medida que as suas proezas forem divulgadas.

Lula se acha o máximo e culpa o aparato de comunicação do governo por esse fato solar não ser de conhecimento geral, nem mesmo dos políticos e militantes. "Vocês não sabem, mas não se preocupem", afirmou. "O PT também não sabe." Falando o tempo todo de eleição, portanto, ele disse aos peemedebistas que não irá "cair na armadilha de falar sobre eleição antes de junho", gabando-se assim de sua esperteza. Ele parece desconhecer o sábio ditado mineiro sobre a esperteza que devora o esperto quando ela é muita.

A farsa presidencial já começou a provocar reações, além daquelas de seus adversários políticos. O ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), que assumirá naquele mesmo mês de junho a presidência do órgão que conduzirá o pleito, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), advertiu Lula sem meias palavras. "O exemplo vem de cima", apontou Mello, citado pelo jornal O Globo. "Este será um ano complicado, teremos uma disputa muito acirrada e cabe a ele (Lula) adotar a postura que se almeja do primeiro dignitário do Brasil."

E foi ao ponto: "O presidente já goza da condição quase privilegiada de disputar sem deixar o cargo. Não pode extravasar, fazer das inaugurações eventos político-eleitorais. Isso só acirrará a disputa e provocará impugnações." O ministro chamou a atenção para outro aspecto do problema - a campanha terceirizada, de que deu prova no sábado o governador acreano Jorge Viana. Numa inauguração federal, no interior do Estado, ele entregou a Lula, no palanque, um manifesto com 4 mil assinaturas para que ele fosse à reeleição - puro teatro, evidentemente, porque se Lula não precisa de algo é de apelos para se candidatar.

Comentou Mello: "Que fique claro que a prática do ato ilegal por terceiros pode contaminar a candidatura. Não adianta o candidato dizer: não sou responsável pelo ato do governador, do prefeito. Isso não serve para eximi-lo da responsabilidade junto ao TSE." O ministro não apenas está certo, mas tem a obrigação de fazer esse alerta. Resta saber como a Justiça Eleitoral reagirá às representações judiciais que o PSDB e o PFL prometem, nas palavras do secretário-geral tucano Eduardo Paes, "para cada evento de campanha antecipada que o presidente fizer".