Título: As pressões sobre Morales
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 24/01/2006, Notas e Informações, p. A3

A julgar pelas fotografias divulgadas pelos jornais e pelos telejornais, o dono da festa da posse de Evo Morales como presidente da Bolívia foi o venezuelano Hugo Chávez. Ele não perdeu oportunidade para aparecer como patrono e tutor de Evo Morales, como, aliás, vem fazendo há tempos com todos os presidentes de países da América do Sul com os quais tem contatos mais seguidos. Há quatro anos, Hugo Chávez demonstrava respeito reverencial pelo presidente Fernando Henrique. Há três anos, não poupava manifestações de admiração pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Agora, com excesso de confiança na sua retórica antiamericana e nos petrodólares que sustentam boa parte de sua política externa, Hugo Chávez trata a todos com uma intimidade que denota indisfarçável sentimento de superioridade. Entre as dificuldades que Evo Morales encontrará para governar a Bolívia estarão as tentativas de tutela, originárias tanto do exterior como das forças políticas bolivianas. O governo norte-americano fará o possível para que Morales mantenha, se não a política atual de erradicação da coca, pelo menos algo parecido. O governo argentino, às voltas com 2,5 milhões de imigrantes bolivianos, na maioria ilegais, certamente insistirá para que o novo presidente adote políticas que estanquem o fluxo migratório e, ao mesmo tempo, precisa que os suprimentos energéticos que recebe da Bolívia sejam constantes e baratos. O governo chileno já começou o trabalho, não de pressão, mas de persuasão, para a normalização das relações diplomáticas, das quais dependerá a estabilidade política e perspectivas de fornecimento de gás.

Por sua vez, Hugo Chávez promete ao novo governo boliviano US$ 30 milhões para programas de saúde e educação e o fornecimento de 150 mil barris de petróleo/mês em troca de produtos agrícolas. Seu objetivo é obter ascendência política sobre o país, não se podendo esquecer que a Venezuela é o único concorrente possível da Bolívia para o fornecimento de gás ao Cone Sul. E o Brasil, atualmente o principal interessado no gás boliviano, quer o melhor tratamento possível para os investimentos de cerca de US$ 1,5 bilhão que a Petrobrás fez na Bolívia.

Todos tratam Evo Morales com notável gentileza. A ponto de ele considerar Hugo Chávez o seu melhor amigo e protetor e Luiz Inácio Lula da Silva o seu mestre, a quem agradeceu publicamente "pela orientação e pelos ensinamentos".

Mas agora Evo Morales terá de se desincumbir da árdua tarefa de governar. Ele já foi deputado, mas não tem a menor experiência administrativa. Além disso, está cercado de quadros partidários habituados à retórica oposicionista, para os quais o pragmatismo é um defeito capital, e de acadêmicos de esquerda, que vêem com franca hostilidade a globalização e o "neoliberalismo". Se forem levadas a cabo as anunciadas políticas de nacionalização e estatização dos recursos minerais do país - a sua grande riqueza -, não apenas os capitais estrangeiros ficarão a distância como os que lá já se instalaram debandarão.

E a Bolívia precisa desesperadamente de capitais para romper o ciclo de pobreza em que vive há séculos. Em pleno século 21, o retorno ao "socialismo comunal" dos povos pré-colombianos, que Evo Morales defendia até pouco tempo atrás, pode ser uma bela idéia romântica, mas só aprofundaria a miséria. Além de não poder afugentar capitais, a Bolívia não pode prescindir de reformas que modernizem o Estado. Após uma breve experiência de modernização - que começava a dar bons frutos -, o país voltou à desordem política e social, tendo seis presidentes em seis anos, três dos quais nos últimos dois anos. A sociedade boliviana, que nunca foi coesa, agora está pulverizada em pequenos grupos de interesse e pressão com objetivos divergentes e conflitantes. Para alguns observadores, a Bolívia atual lembra certas estruturas pré-feudais européias. E a desintegração do Estado é tão acentuada que, há anos, os encargos básicos do governo não são sustentados pelos impostos, e sim por doações de países estrangeiros. Professores e médicos recebem remuneração por esse sistema. Burocratas e administradores são contratados por organismos multilaterais, mas trabalham para o governo. É essa a Bolívia que Evo Morales começa a administrar.