Título: Onde o mundo não é plano
Autor: Otaviano Canuto
Fonte: O Estado de São Paulo, 21/01/2006, Economia & Negócios, p. B2

A mutação na economia global, em curso nos últimos anos, tende a se acentuar. Projeções das tendências atuais para os próximos 25 anos feitas pelo Grupo de Perspectivas do Desenvolvimento do Banco Mundial apontam para um produto interno bruto (PIB) global de US$ 75 trilhões em 2030, ante US$ 35 trilhões no ano passado. Os EUA continuarão como a maior economia do mundo, mas deverão ser ultrapassados pelo conjunto dos países em desenvolvimento no período. As parcelas medidas a preços de mercado da China e da Índia, naquele PIB dilatado, deverão saltar de 4,7% e 1,5%, em 2005, para 9,9% e 2,9% em 2030, respectivamente.

Trata-se de muito mais que mera expansão com mudança na repartição do bolo. Conforme já se pôde enxergar no passado recente, esse padrão de crescimento global está sendo marcado, entre outros aspectos, por forte alteração de preços relativos. O preço do trabalho tende a perder terreno em relação aos demais preços básicos, enquanto as commodities baseadas em recursos naturais têm experimentado uma valorização cujo fôlego parece de longa extensão. No mesmo contexto, vem-se percebendo um revigoramento da geopolítica em torno dos recursos minerais e energéticos, após longo período em que esta parecia ter perdido qualquer relevância.

A queda tendencial no preço da mão-de-obra está refletindo a incorporação crescente do contingente populacional chinês e indiano (40% do mundo), além do resto da Ásia, com níveis educacionais em elevação e com aspiração de padrões de vida modestos quando comparados aos vigentes nos países ocidentais desenvolvidos, num contexto de crescente transferência de tecnologia produtiva e declinantes custos de transporte e comunicações. É essa integração mercantil da população, com seu efeito sobre preços, que subjaz a expansão espetacular dos gigantes asiáticos.

Se tal processo já se tornara evidente no bojo da expansão das manufaturas chinesas, sua amplitude revelou-se ainda maior com a explosão de exportações, pela Índia, de serviços até alguns anos atrás inimagináveis como produtos comercializáveis internacionalmente. Conforme ilustrado por Thomas Friedman em seu livro O mundo é plano, a redução do peso da geografia permitida pelas novas tecnologias em muitos segmentos produtivos vem alargando e nivelando o terreno da competição por oportunidades de trabalho em áreas antes impensáveis.

O achatamento do mundo no que diz respeito à indústria e aos serviços já está até condicionando a macroeconomia norte-americana. É parte da explicação da baixa transmissão inflacionária após experiências recentes de desvalorização do dólar ou de subida nos preços de energia.

Por outro lado, o mesmo padrão de crescimento global vem implicando um deslocamento brutal para cima na demanda por recursos naturais e energéticos, não só pelo aumento acelerado de tamanho do PIB mundial, mas também pela composição com peso cada vez maior de economias cuja intensidade de consumo de energia e matérias-primas por unidade de PIB ainda é maior que nas economias mais desenvolvidas. Segundo o relatório anual do Worldwatch Institute divulgado na semana passada, em 2005 a China usou 26% da produção mundial de aço plano, 32% do arroz, 37% do algodão e 47% do cimento. Nos próximos 25 anos, segundo projeções da Agência Internacional de Energia, 60% a 70% do aumento na demanda mundial de energia virão dos países em desenvolvimento.

No que diz respeito a commodities, os ganhos tecnológicos e de produtividade não têm sido suficientes para compensar o colossal aumento de demanda e, mesmo sofrendo periódicas reversões cíclicas, os preços mais altos dos recursos naturais vieram para ficar por longo tempo. Em vez de um mundo plano, temos, no caso, o alto relevo readquirido pela geografia dos recursos minerais e energéticos, diferenciando os diversos países.

Pode-se prever a proliferação de episódios como a turbulência internacional recente em torno do gás da Rússia para a Ucrânia e Europa, bem como o uso geopolítico de gás e petróleo na América Latina e alhures. Uma questão crucial será o modo como EUA, China e outras potências vão lidar com a África, o Oriente Médio e a Ásia Central, fontes potenciais de commodities, mas onde se encontram vários Estados fragilizados ou falidos.