Título: ARTIGO: Não há um final feliz à vista no Iraque
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Fonte: O Estado de São Paulo, 22/01/2006, Internacional, p. A21

No terceiro ano da ocupação do Iraque, já é parte do cotidiano da maioria dos cidadãos ocidentais o fato de eles viverem num mundo subjugado por mentiras, meias-verdades e informações suprimidas.

No Iraque, muitos cidadãos, incluindo alguns que inicialmente apoiaram a guerra, perguntam se seu país vai sobreviver, ou se o resultado da recolonização ocidental em breve será a desintegração. Uma paisagem hobbesiana hoje pode levar a uma divisão tripartida amanhã.

Na segunda metade do século passado, o grande poeta iraquiano Muhammad Mahdi al-Jawahiri, ele próprio filho de um religioso xiita e nascido na cidade sagrada de Najaf, pôde expressar seu distanciamento do sectarismo religioso e afirmar sua fé num nacionalismo iraquiano: ¿Ana al-Iraqu, lisani qalbuhu, wa dami furatuhu, wa kiyani minhu ashtaru¿ (sou o Iraque, seu coração é minha língua, meu sangue, seu Eufrates, meu próprio ser, de seus ramos formado). Parece muito distante no tempo.

O que há pela frente? A ocupação americana depende intensamente do apoio de fato dos partidos políticos xiitas, especialmente o Conselho Supremo para a Revolução Islâmica no Iraque, instrumento de Teerã no país. O aiatolá Ali al-Sistani, que, logo depois da queda de Bagdá, disse aos iraquianos de todos os grupos que apoiava um Iraque independente e unido, pode ter falado sério na época, mas os acontecimentos avançaram.

Quando Sistani evitou que os grupos xiitas lançassem sua própria luta e convenceu Moqtada al-Sadr a cessar a resistência, também danificou a unidade do país. Uma luta de resistência unificada em duas frentes poderia ter levado a um governo unificado mais tarde. Não surpreende que Thomas Friedman, do jornal The New York Times, tenha defendido o Nobel da Paz para Sistani.

Se os partidos xiitas tivessem decidido resistir à ocupação, ela teria terminado há muito tempo ¿ isto se chegasse a acontecer. Os clérigos no poder no Irã deixaram claro a Washington que não se oporiam à derrubada do Taleban ou de Saddam Hussein. Eles fizeram isso por seus próprios motivos e em seu próprio interesse, mas seu jogo foi perigoso.

Se os baathistas e os militares nacionalistas não tivessem resistido, negando assim ao presidente americano, George W. Bush, e ao primeiro-ministro britânico, Tony Blair, a glória com que sonhavam e provocando uma crise de confiança em Washington e Londres, a mudança de regime em Teerã poderia ter continuado na agenda, apesar do apoio manifestado pelo Irã aos Estados Unidos.

DIVISÃO

Ironicamente, foi a resistência no Iraque que tornou qualquer aventura desse tipo impossível no médio prazo. O alto comando militar dos Estados Unidos, sobrecarregado no Iraque, está seriamente dividido sobre a guerra, e há pouca dúvida de que alguns funcionários importantes do Pentágono defendem uma retirada rápida por razões puramente militares.

Poderia o império, paralisado militarmente, obter um triunfo político? Uma desintegração do Iraque, que além de sua prima Síria era o único Estado a resistir ao domínio americano, significaria uma espécie de vitória. Quanto a isso, não deveria haver dúvida.

O grupo iraquiano que mais se beneficiou com a ocupação foram os líderes tribais curdos. Os curdos receberam grande financiamento por 12 anos antes da guerra.

E agências de inteligência dos Estados Unidos usaram sua região como base para penetrar no restante do país. Os curdos dominam o Exército e a polícia fantoches, determinaram o caráter ultrafederal da Constituição iraquiana e não escondem o fato de que apóiam uma limpeza étnica de árabes e outros não-curdos em Kirkuk, incluindo aqueles nascidos na cidade.

Minorias oprimidas numa época podem rapidamente se tornar opressoras em outra, como Israel continua a provar ao mundo. Os líderes curdos, com Kirkuk garantida, ficam felizes por se tornar um protetorado ocidental.

Se a unidade imposta pelos clérigos aos grupos xiitas ruir ¿ e ela pode ruir, se for privada do luxo das tropas e do apoio aéreo dos Estados Unidos ¿, um novo acordo poderá ser possível para evitar a balcanização do Iraque. O mesmo poderia acontecer se Teerã decidisse que um Iraque genuinamente independente seria do melhor interesse da região, mas o cálculo racional nem sempre é o forte dos mulás. Não há um final feliz à vista.

E o petróleo? O modelo que está sendo preparado no momento custará ao Iraque bilhões em receitas perdidas, enquanto as corporações globais colherão os frutos. Os contratos em preparação lhes dariam retornos de 42% a 162% num setor onde os retornos mínimos são de 12%.

Embora o petróleo vá continuar como propriedade legal do Estado, os acordos de compartilhamento de produção darão as concessões a companhias privadas. Isso também seria visto como uma vitória pela Halliburton e seus padroeiros políticos.

Se um governo iraquiano apoiar os acordos de compartilhamento de produção, os Estados Unidos e a Grã-Bretanha poderão retirar suas tropas e reivindicar uma vitória. O triunfo da liberdade será refletido no acordo do petróleo. Afinal, pouca coisa importa além disso. Mas um acordo desse tipo poderia ser mantido indefinidamente sem a presença das tropas imperiais? Improvável.

O petróleo, no passado, revitalizou os movimentos nacionalistas e transformou a política no Irã e no Iraque. Os tempos agora são outros, mas os problemas básicos permanecem, e a luta pelo petróleo poderá ser longa.