Título: Voto entre moderação e radicalismo
Autor: Daniela Kresch
Fonte: O Estado de São Paulo, 22/01/2006, Internacional, p. A20

A histórica Fatah, no governo, enfrenta um Hamas extremista e fortalecido que tem chances de chegar ao poder

RAMALLAH, CISJORDÂNIA

De um lado a Fatah. De outro, o Hamas. O ringue está montado para o confronto entre os dois principais partidos palestinos - que representam caminhos mais que distintos tanto para a solução de problemas internos da Cisjordânia e da Faixa de Gaza quanto para o futuro das negociações de paz com Israel. Nas eleições parlamentares de quarta-feira, as primeiras em dez anos, 1,2 milhão de palestinos vão às urnas escolher entre duas opções. Uma delas prega continuidade e negociação com Israel. A outra, mudança e oposição armada ao Estado Judeu.

"Essas eleições são críticas", analisa o escritor e empresário palestino Sam Bahour. "Os palestinos vão escolher a próxima geração de políticos para levar a cabo duas tarefas importantíssimas e paralelas: resistir à ocupação israelense e, ao mesmo tempo, construir as instituições de um futuro Estado nacional."

Mais de 800 candidatos de 11 partidos concorrem nas eleições, que vão escolher os 132 integrantes do Conselho Legislativo Palestino (CLP), o Parlamento local com sede em Ramallah, na Cisjordânia. O Conselho governa a Autoridade Nacional Palestina (ANP) juntamente com o presidente - eleito em votação separada (no caso, Mahmud Abbas, vencedor da eleição presidencial de janeiro de 2005).

Segundo pesquisa eleitoral divulgada sexta-feira pelo Centro de Mídia e Comunicação de Jerusalém, o Movimento Palestino de Libertação Nacional, a Fatah, de Abbas, deve ficar com 32,3% das cadeiras do Parlamento, algo inimaginável na época em que o partido era liderado pelo mitológico Yasser Arafat, morto em novembro de 2004. Nas eleições parlamentares anteriores, em 1996, a Fatah arrebatou quase 80% das cadeiras do Conselho Legislativo.

Já o Movimento de Resistência Islâmica, o Hamas, uma milícia armada que aos poucos toma contornos de partido político, deve, segundo a pesquisa, arrebatar 30,2% dos votos. Em viés de alta, o Hamas pode até surpreender e ganhar da Fatah no pleito, recebendo a incumbência de montar o próximo gabinete palestino.

A maior divergência entre Fatah e Hamas é quanto ao relacionamento com Israel. Para a Fatah, o caminho é o da negociação para se chegar, finalmente, a um acordo definitivo para a criação de um Estado Palestino com fronteiras definidas, lado a lado com Israel. Já para o Hamas o caminho é bem diferente: o da luta armada com o objetivo de destruir o Estado Judeu e estabelecer a Palestina em todo o território entre a Jordânia e o Mar Mediterrâneo.

"A luta é entre o bem e o mal", disse ao Estado Mohamed Dahlan, um dos principais líderes da Fatah na Faixa de Gaza. "Se o Hamas ganhar o comando do Parlamento, não haverá mais lugar para as vozes da razão. O fim das negociações de paz vai jogar os palestinos numa paralisia política pela próxima década", afirma Dahlan.

Por dez anos, tempo em que o carismático Arafat reinou sozinho, a Fatah monopolizou a política interna da ANP. Desde a morte do líder, no entanto, a Fatah enfrenta acusações de corrupção e ineficiência. Ao mesmo tempo, sofre com uma acirrada briga interna entre integrantes da jovem e da velha- guarda. Os vencedores, por enquanto, são os jovens, que conseguiram pôr o popular Marwan Barghuti, de 45 anos (que cumpre pena perpétua numa prisão israelense), como líder da lista de candidatos da Fatah. O partido também se tornou um saco de gatos de facções armadas semi-independentes e muitas vezes rebeldes, entre elas as Brigadas dos Mártires de Al-Aqsa.

Enfraquecido, o partido de Arafat acabou abrindo caminho para o polêmico Hamas, mais conhecido por cometer inúmeros atentados terroristas contra Israel. Para muitos palestinos, porém, o Hamas é visto com bons olhos, menos pelos entusiasmados discursos anti-sionistas - ou pelas aspirações islâmicas - e mais pelo lado social do grupo. Os serviços de caridade do Hamas têm ajudado muitos cidadãos esquecidos pelo poder público a enfrentar as dificuldades do dia-a-dia.

O Hamas concorre pela primeira vez em termos nacionais. Mas no campo municipal, o grupo radical está mais que presente. São do Hamas as prefeituras de grandes cidades como Nablus, na Cisjordânia, e Rafah, na Faixa de Gaza. Sua plataforma mistura posições extremadas anti-Israel e em favor de um Estado islâmico com promessas de desenvolvimento socioeconômico nos campos da saúde, educação e transportes. Entre os candidatos do Hamas estão professores e muitas mulheres, o que enfatiza a ambivalência entre radicalismo ideológico e liberalismo social.

Essa ambivalência também é evidente nas atitudes do Hamas. Apesar de ainda pregar a destruição de Israel, ele é o grupo radical mais apegado ao cessar-fogo com os israelenses decretado em fevereiro de 2005. Desde então, seus mais de 5 mil militantes não cometeram um atentado sequer em Israel (ao contrario da Jihad Islâmica, facção armada que boicota a trégua e as eleições).

Fora isso, o candidato número 2 da lista do Hamas, o xeque Mohamed Abu Tir, disse, em rara entrevista ao jornal israelense Haaretz, que o grupo admite a possibilidade de negociar com Israel se tiver a oportunidade de comandar o Parlamento palestino. Segundo Abu Tir, a decisão do Hamas de participar das eleições - e de não pôr na plataforma eleitoral do grupo um item chamando para a destruição de Israel - consiste numa importante mudança estratégica. "Vamos provar que entendemos de política mais que outros", afirmou Abu Tir.

A suposta moderação do Hamas intriga os próprios palestinos, que não sabem quais são as verdadeiras intenções de seus líderes. Para Daoud Kuttab, diretor do Instituto de Mídia Moderna da Universidade Al- Quds, o grupo radical vai ter de deixar de lado as armas e as posições extremas se quiser participar do jogo político democrático. "Se o Hamas conquistar mais cadeiras do que a Fatah, terá de deixar a intransigência se quiser formar coalizões com outros partidos para poder governar. Se ficar em segundo lugar, se tornará a principal forca de oposição, mas também terá de aceitar posições mais conciliadoras para liderar o bloco oposicionista. De uma forma ou de outra, o Hamas vai ter que ficar mais brando", afirma.

O otimismo de Kuttab não é compartilhado por Bassam Eid, diretor-executivo do Grupo de Monitoramento dos Direitos Humanos Palestinos. Para Eid, se o Hamas ganhar a maioria dos assentos no Parlamento, as conseqüências serão graves. "Vai ser um grande desastre para o povo palestino. E o Hamas sabe muito bem disso. Nos anos 80, quando os extremistas islâmicos tomaram o poder na Argélia, o mundo inteiro reagiu mal, decretando sanções econômicas contra o país. Não gostaria de ver os palestinos nesse mesmo barco", diz Eid.