Título: ARTIGO: Chávez sobreviverá à desordem?
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Fonte: O Estado de São Paulo, 22/01/2006, Internacional, p. A18

Para os defensores do capitalismo e da democracia na América Latina, o presidente Hugo Chávez é visto como um homem perigoso. A crescente influência cubana no apoio e na defesa do regime de Chávez levou alguns venezuelanos a falar de uma futura "Cubazuela". Mas a permanência de Chávez no poder está cada vez mais ameaçada pela escalada da desordem, enquanto seu governo não consegue distribuir os bens públicos. Na verdade, a desordem talvez seja o legado mais duradouro de Chávez e reflete o fracasso dos governos anteriores, assim como de seu governo.

Esse desordem está arrastando a Venezuela para longe de um modelo cubano e em direção a padrões de comportamento hoje vistos na Nigéria, o principal exemplo mundial de Estado petroleiro fracassado. Chávez ainda fala de "semear o petróleo", como falaram todos os presidentes venezuelanos desde que Arturo Uslar Pietri, escritor e político conservador, cunhou a frase em 1936. Mas Chávez parece simplesmente continuar a triste história de colossal desperdício das receitas do petróleo, desorganização e investimentos fracassados, que empobreceram o povo venezuelano em décadas recentes.

Durante 2005,surfando na onda da alta do preço do petróleo e exibindo um dom para atrair atenção internacional, Chávez lançou uma série de iniciativas para consolidar sua "Revolução Bolivariana", pregou um vago "socialismo para o século 21" e espalhou agressivamente sua influência pela América Latina.

A espetacular carreira do ex-comandante pára-quedista, lançada com uma fracassada revolta militar de jovens oficiais militares em 1992, atingiu o clímax com a consolidação de seu controle sobre todas as instituições estatais da Venezuela, completada nas eleições de 2005 - que deram a seus defensores todos os assentos na Assembléia Nacional.

Uma das vantagens de Chávez nos altos e baixos de sua turbulenta carreira política é que ele foi subestimado persistentemente por seus adversários. A oposição democrática está dividida em muitos grupos e facções com ambições conflitantes, sobrecarregada pelo legado da corrupta partidocracia das últimas décadas (1958-98) e sem liderança nem um programa alternativo coerente. Além disso, os líderes da oposição têm pouco contato com a massa de pessoas pobres entre as quais Chávez tenta construir sua base política com generosos gastos em projetos sociais.

Três semanas de entrevistas na Venezuela, onde vivi durante seis anos (1968-74), deixaram-me com a impressão de mais volatilidade na política venezuelana, e mais fragilidade na manutenção de Chávez no poder, do que se acredita. Os esforços de Chávez para construir um apoio popular mais sólido foram prejudicados recentemente por dois acontecimentos que aumentaram sua vulnerabilidade política:

1) A eleição de dezembro na qual Chávez ganhou total controle da Assembléia Nacional teve uma abstenção de 75% dos eleitores registrados, o que tende a prejudicar a legitimidade de seu mandato. As abstenções foram motivadas por suspeitas de que o sistema de votação eletrônica permitia ao governo detectar como as pessoas votariam por ressentimento contra o controle, pelo governo, da Comissão Eleitoral Nacional (CEN). Por lei, a CEN deve ser apartidária, mas foi preenchida com os defensores de Chávez. O temor de haver violação das urnas foi fortalecido pela criação de uma lista negra impedindo tramites e contratações com o governo, das 3,5 milhões de pessoas que assinaram a petição para o referendo de agosto de 2004 sobre a revogação do mandato de Chávez, vencido pelo presidente.

Apesar de Chávez controlar a Assembléia Nacional, o Exército, o Judiciário, as autoridades eleitorais e o promotor público, ele tem sido cuidadoso ao preservar as formas mais avançadas de democracia. Embora a Venezuela tenha sido submetida a contínuas alternâncias de guerra civil e ditadura entre a declaração de independência, em 1821, e a derrubada da ditadura de Marcos Pérez Jiménez, em 1958, desde então o povo desenvolveu uma forte crença na democracia. Isso foi documentado nas pesquisas de opinião da ONG Latinobarómetro na última década, ao longo da qual os venezuelanos registraram persistentemente mais apoio às instituições democráticas do que quase todos os países latino-americanos.

O que é "socialismo para o século 21"? O vice-presidente José Vicente Rangel, principal operador político de Chávez, que foi advogado e porta-voz do movimento de guerrilha dos anos 1960, explicou-me que "este é um conceito pós-capitalista de república, uma forma mais elevada de democracia, na qual estamos tendo um diálogo mais rico, sem dogmatismo, catecismos ou manuais. Isto é socialismo com liberdade e participação popular. O socialismo morre quando está aprisionado em um partido ou aparato governamental. Usamos nosso petróleo para espalhar a Revolução Bolivariana e conquistar novos mercados na América Latina e no Caribe".

Chávez está lançando várias iniciativas, além da sustentação da economia cubana com grandes embarques de petróleo em troca dos serviços na Venezuela de médicos, instrutores de esportes e assessores de segurança cubanos. Entre essas iniciativas estão Petro Caribe e Petro Sul, para prover países vizinhos com petróleo em condições especiais, e Telesur, nova emissora de televisão via satélite. Na reunião em Brasília na semana passada com os presidentes Néstor Kirchner, da Argentina, e Luiz Inácio Lula da Silva, Chávez lançou duas novas idéias, para um Conselho de Defesa da América do Sul e um Banco do Sul.

Mas a mais ambiciosa de todas essas iniciativas de Chávez é para o Gasoduto do Sul, custando US$ 20 bilhões, endossado pelos três presidentes na quinta-feira. O novo gasoduto de 8.000 km atravessaria todo o território brasileiro, incluindo a Floresta Amazônica, estendendo-se da Venezuela à Argentina. Pelo menos duas duvidas saltam sobre a viabilidade do projeto. Primeiro, dinheiro: nem Brasil nem Argentina têm como bancar um projeto nessa escala. Segundo: Brasil e Argentina já têm ou terão em poucos anos amplas reservas de gás. A Argentina já tem bastante gás, que está faltando por causa da queda-de-braço entre os fornecedores e Kirchner, que se recusa a ajustar tarifas de gás e eletricidade para compensar as perdas causadas pela desvalorização do peso argentino durante a crise de 2002.

Chávez está sendo cada vez mais criticado por devotar muita atenção ao crescimento de sua revolução no exterior enquanto negligencia os problemas da Venezuela. Em uma declaração que lembra a carta pastoral de maio de 1957 que o arcebispo de Caracas Rafael Arias escreveu oito meses antes da derrubada da ditadura de Pérez Jiménez, a Conferência dos Bispos Venezuelanos protestou contra "a ampla e profunda corrupção em diversas áreas, 'solidariedades' caras no exterior, a deterioração de nossas instituições e o declínio da qualidade de vida causado pelo aumento acelerado da pobreza e da insegurança... A imagem que hoje sintetiza muitas improvisações, omissões e manipulações é o colapso de diversos trabalhos de infra-estrutura de estradas, saneamento público e educação pelo país". Em seu programa semanal de televisão Alô Presidente, Chávez disse que a declaração dos bispos estava "infestada de mentiras" e chamou a Venezuela de "a mais sólida democracia do continente".

2) Raiva e medo foram provocados na população pelo fechamento permanente, este mês, da superestrada que era a única ligação entre Caracas, a metrópole de 4,5 milhões de pessoas situada a mil metros de altura, com o porto de La Guaira e o principal aeroporto internacional do país, em Maiquetia, usada por 50 mil carros e caminhões diariamente como o cordão umbilical que liga a Venezuela ao mundo exterior.

A autopista, com dois túneis e três viadutos, era um dos prestigiados projetos do ditador Marcos Pérez Jiménez (1948-58). Foi fechada por causa da ameaça de colapso do viaduto mais próximo de Caracas, com 17 quilômetros de extensão em queda para a costa do Caribe. Os pilares maciços que sustentam o viaduto sobre um grande precipício cederam e racharam sob a pressão dos movimentos de terra produzidos por décadas de vazamentos de esgoto dos assentamentos de invasores de terra nas colinas por onde serpenteia a estrada.

O perigo para a autopista foi detectado pela primeira vez em 1987. Desde então, o problema passou por 18 ministros de Infra-Estrutura nos últimos cinco governos; Chávez passou por seis deles em seus sete anos no poder. Duas comissões e três editais públicos, com propostas de várias empresas de engenharia e construção, não produziram nenhuma ação em um clima de rivalidade e intriga intensa. Enquanto isso, a estrada ficou mais perigosa por causa de falhas na iluminação pública e freqüentes assaltos a mão armada contra viajantes noturnos. A única rota alternativa é a velha estrada Caracas-La Guaira, onde o trajeto é marcado por curvas perigosas, quedas de barreira e banditismo.

"A Venezuela não tem cultura de manutenção", disse Rangel. "Vemos isso em monumentos como o Panteão Nacional e o edifício do Congresso, que estamos tentando consertar." O Panteão é a última morada de Simón Bolívar, o aristocrata local que os venezuelanos veneram como o Libertador da América do Sul.

"Nos próximos anos, a queda do viaduto vai continuar sendo um símbolo do completo fracasso do governo Chávez depois de sete anos no poder em completar um único grande projeto para beneficiar o povo e a economia a longo prazo", observou a respeitada newsletter Veneconomia Semanal. "O país está desabando fisicamente . Danos estruturais de longo prazo estão sendo impostos à economia."

O fechamento da autopista causou enormes deslocamentos e pode custar à Venezuela muito em produção total e inflação. É um sintoma da ampla negligência em relação à infra-estrutura básica da Venezuela, incluindo estradas, pontes, portos e a rede elétrica. O porto de La Guaira e o aeroporto de Maiquetía respondiam por 30% das importações da Venezuela, especialmente bens de consumo, agora sendo transferidos para o porto industrial de Puerto Cabello, 150 quilômetros a oeste. Os passageiros das linhas aéreas vão desembarcar na cidade vizinha de Valencia. Dessa região central, o tráfego de caminhões pesados e ônibus vai atingir Caracas por meio de outra estrada deteriorada e do viaduto Cabrera, que também está em perigo de desabamento, já que atravessa um grande pântano. Esses problemas podem ser agravados com a chegada a Caracas de cerca de 60 mil visitantes estrangeiros para o Fórum Social Mundial, que será realizado de terça-feira até o próximo domingo como um protesto anual contra a globalização e ao Fórum Econômico Mundial na mesma semana em Davos, na Suíça.

Enquanto a infra-estrutura da Venezuela se deteriora, Chávez usa os grandes lucros que obtém com a venda do petróleo para ganhar apoio de outros países latino-americanos. Durante 2005, a Venezuela gastou US$ 1,6 bilhão para comprar títulos do governo argentino. "Não temos limites", disse o ministro das Finanças Nelson Merentes ao jornal Clarín. "Nós sempre avaliamos o mercado, mas estamos dispostos a comprar sempre que o governo argentino nos pedir." Enquanto isso, Chávez deixa de fornecer insumos básicos para hospitais e clínicas públicas da Venezuela. No posto de saúde pública Leonardo Ruiz Pineda, no conjunto habitacional 23 de Janeiro, em Caracas, uma base do apoio popular de Chávez, não há placas para fazer raio-X, produtos químicos para fazer testes de laboratório, palitos para examinar a garganta e remédios. Uma equipe de 40 empregados atende apenas 50 pacientes por dia.

Os 20 mil médicos cubanos e instrutores esportivos que vivem e trabalham nas comunidades pobres, no programa Barrio Adentro, produziram um grande impacto de propaganda, tanto dentro quanto fora da Venezuela. Mas esses médicos cubanos são treinados para lidar apenas com os problemas mais simples. Pacientes com queixas mais graves ou ferimentos são mandados para as longas filas dos hospitais públicos.

"Os problemas em nossos hospitais são o volume de pacientes e os altos níveis de criminalidade", disse um médico venezuelano. A Venezuela tem a maior taxa de mortes à bala por cada 100 mil habitantes, superando o Brasil entre 57 países estudados pela Unesco. A taxa de assassinatos triplicou nos dez anos antes de 2003, depois do que o governo parou de divulgar as estatísticas de homicídio. "Uma noite, oito homens chegaram com ferimentos de bala no tórax", disse o médico. "Mas temos apenas quatro tubos para drenar os pulmões, então, os outros quatro morreram. Não temos gaze, suturas, desinfetantes líquidos e luvas cirúrgicas. Nosso hospital tem uma máquina de tomografia, mas ninguém para operá-la."

O declínio do sistema de saúde pública da Venezuela começou três décadas atrás. "O sistema de postos de saúde e hospitais públicos funcionou bem, com grandes melhoras durante os bons anos do petróleo nos anos 1970, mas se deteriorou rapidamente depois da desvalorização da moeda em 1983 (conhecida como Sexta-Feira Negra), depois que o preço do petróleo caiu", disse Angel Rafael Orijuela, ex-ministro da Saúde. "Com a desvalorização, as faltas de insumos começaram e continuam até hoje. Os gastos de saúde pública caíram de US$ 175 per capita em 1978 para US$ 60 em 1993. As estatísticas de saúde pública começaram a estagnar e até a cair em algumas áreas. O problema foi intensificado pela corrupção. As mercadorias não eram roubadas pelos empregados, como se dizia. Era pior. Salários eram pagos para funcionários fantasmas. Líderes dos sindicatos assinavam recibos para mercadorias vendidas a preços inflacionados sem concorrência pública, mas nunca entregues."

O símbolo mais poderoso do colapso da administração pública venezuelana são as torres gêmeas do Centro Simón Bolívar, outro megaprojeto da ditadura de Pérez Jiménez, que abrigou vários ministérios como uma referência do crescimento de Caracas nos anos 1950 e 1960. Desde então, as torres caíram em ruína. A maior parte dos ministérios fugiu de lá e as torres foram saqueadas de aparelhos de ar condicionado, de esquadrias de janelas, de mármore dos lobbies, de bronze da portas e corrimãos de seus elevadores e escadarias. Enquanto isso, as áreas públicas das torres foram colonizadas por camelôs, que instalaram seus próprios urinóis e lanchonetes, pagando aos funcionários municipais pelo uso do espaço.

A ruína da autopista Caracas-La Guaira, do sistema de saúde pública e das torres do centro Simón Bolívar são sintomas de uma profunda doença na sociedade venezuelana, agravada pelo impacto das crescentes receitas de petróleo sobre instituições fracas. A deterioração precedeu a subida ao poder em 1998 de Chávez, que a negligenciou também . Suas ambições estão centradas em outro lugar, na cena internacional, mas ele ignora o risco da crescente desordem. Enfrentar essa doença exige uma mobilização em larga escala para a qual a oposição não está preparada. Não tem idéias, convicção nem contato com a massa de pobres. Até agora, não há heróis nessa história.