Título: Por que o ex-cocaleiro venceu a eleição
Autor: Edmundo Paz Soldán
Fonte: O Estado de São Paulo, 22/01/2006, Internacional, p. A17

Em 1993, a Bolívia elegeu seu primeiro vice-presidente aimará, Victor Hugo Cárdenas. Feliz pela cobertura positiva que haviam dado à Bolívia naqueles dias, cheguei de férias a Cochabamba disposto a celebrar a boa nova com meus compatriotas. Devíamos estar orgulhosos de um líder indígena que falava seis idiomas e tinha doutorado de uma prestigiada universidade francesa.

Fiquei surpreso, porém, ao descobrir que, para boa parte da classe média a que eu pertencia, a eleição de Cárdenas como companheiro de chapa de Gonzalo Sánchez de Lozada era má notícia. Discuti com meu tio, que me disse: ¿Imagine se acontece algo com Sánchez de Lozada? Teremos um índio presidente!¿ Seu tom condensava todo o horror de uma classe social muito pouco disposta a aceitar as mudanças estruturais que começavam a sacudir o país.

Disse a meu tio que não via nada de ruim no fato de um representante da maioria governar o país pela primeira vez. ¿Se isso ocorrer, quero ver como você ficará¿, respondeu. ¿Eu farei as malas e com certeza nos encontraremos no aeroporto.¿

Recordo isso depois das históricas eleições presidenciais do dia 18, vencidas de modo contundente por um candidato aimará, Evo Morales. Pouco tempo atrás, almocei com aquele meu tio e lhe perguntei o que pensava de Morales. Ele me disse que não comungava com suas idéias, que os EUA colocariam entraves por todo lado, mas ao menos os preceitos mais fortes do ideário indígena eram ¿não roubar, não mentir¿, e com Evo acabaria o roubo descarado do erário público que caracterizou os governos democráticos dos últimos 20 anos.

Lembrei-o do que me dissera sobre Cárdenas e perguntei o que mudara no país. Ele disse que agora tínhamos experiência sobre o que foram os governos dos partidos tradicionais: corruptos, carentes de uma visão nacional. Para ele, o desgaste dos partidos tradicionais justificava plenamente a ascensão de Morales.

Essa ascensão não era tanto uma virtude de Evo, mas o resultado da debacle econômica a que os presidentes neoliberais haviam conduzido o país.

Nas palavras de meu tio encontrei um eco do que meu pai disse em 2002, ao ver pela TV, admirado, os 30% dos representantes do novo Parlamento de extração indígena: ¿Os índios são 60% da população; alguma fatia lhes deve caber.¿ Novamente, não se tratava das conquistas de Morales, e sim de uma espécie de predestinação histórica: Evo surge no momento adequado, quando o país está maduro para aceitar a idéia de um presidente indígena.

No termo ¿alguma fatia¿ de meu pai se expressava o fato de que um setor da classe média tinha certo senso do momento histórico que a Bolívia atravessa. Meu pai recordava, em sua infância em Cochabamba, nos anos 40, os pongos, índios condenados à mais humilhante das servidões.

As famílias da elite presenteavam pongos a seus filhos, para que eles se encarregassem de todas as necessidades desses garotinhos privilegiados.

Os pongos tinham que dormir no chão, junto à porta do quarto do senhor a quem serviam, para o caso de este acordar de madrugada e pedir um copo d¿água. Eram os pongos que se encarregavam de trazer em suas mãos o excremento de lhama tão necessário para criar um bom fogo na cozinha.

Um setor da classe média e da elite observa o processo histórico do mesmo modo que príncipe Fabrizio e seu sobrinho Tancredi faziam em O Leopardo. Nesse romance de Lampedusa, ambientado na Sicília de 1860, estava claro que a aristocracia devia ceder posições ante a unificação iminente da Itália; o triunfo de Garibaldi significava também o triunfo das classes populares.

O príncipe observava tudo com ceticismo, embora soubesse que sua classe havia fracassado; seu sobrinho, admirador de Garibaldi, tratava de tirar partido da nova situação sob a égide da frase ¿algumas coisas precisam mudar para que tudo permaneça igual¿.

Assim, meu pai e meu tio representam os que não votaram por Morales, mas entendem por que o líder aimará triunfou, e tenho amigos empresários que, como Tancredi, proclamam seu apoio a Morales. Meu cunhado, gerente de uma empresa de alimentos, me diz que votou em Evo porque assim se evitarão os bloqueios selvagens que paralisaram a economia e fizeram cair dois presidentes em dois anos: ¿Para que acabem esses bloqueios, é preciso votar nos bloqueadores.¿

Se um setor da classe média e da elite se acomoda à nova realidade e outro setor ¿ os intelectuais de esquerda, os universitários ¿ acredita genuinamente que só Evo pode garantir a verdadeira transformação do país, outro setor observa esse processo com medo.

A campanha do ex-presidente Tuto Quiroga, adversário de Evo, explorou ao máximo esse temor; seus programas na TV sugeriam que com Morales no poder se perderiam fontes de trabalho, se estatizaria a economia e até se trocaria a bandeira nacional pela wiphala (bandeira dos aimarás).

Quiroga também indicou que a amizade de Morales com o presidente venezuelano, Hugo Chávez, só traria desgraças. Não faltaram editoriais sobre a inevitável ¿chavização¿ do país, e nos bairros residenciais ouviam-se conversas de pessoas certas de que Evo confiscará a propriedade privada, expropriará terras dos grandes fazendeiros e cortará o pescoço dos donos de fábricas e gerentes de bancos.

Evidentemente, o temor de boa parte da classe média e da elite não se deve apenas às razões conjunturais que Tuto explorou. As razões são antigas e têm a ver com traumas e culpas aninhados nas profundezas do imaginário criollo (descendentes dos colonizadores brancos).

Trata-se da inevitável vingança do pongo. Os abusos a que submeteram o índio desde a colônia devem desembocar numa ¿guerra das raças¿. O aimará Túpac Catari se sublevou há mais de dois séculos e sitiou La Paz por quase um ano. Catari foi preso e depois partido em dois por cavalos que o puxaram para direções opostas.

Dizem que, antes de morrer, afirmou: ¿Voltarei e serei milhões.¿ Para muitos, o retorno começou.

São milhões; Evo é apenas a ponta de lança. Boa razão para não ter votado em Evo Morales. Ou para ter votado nele.