Título: Líder não é um Che Guevara indígena
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Fonte: O Estado de São Paulo, 22/01/2006, Internacional, p. A16

Evo Morales, o novo presidente da Bolívia, não é o primeiro chefe de Estado de origem indígena da América Latina. O primeiro foi Benito Juárez, líder do México de 1858 a 1872. E a Bolívia não é a América Latina. Ela e a Guatemala são as únicas nações onde povos indígenas são a maioria da população. Não obstante, a importância da vitória eleitoral de Morales não deve ser subestimada, graças ao peso simbólico e às possíveis implicações para o restante do hemisfério.

Numa região onde a concentração do poder e da renda sempre foi ultrajante, e maior do que em qualquer outra parte do mundo, ter um presidente vindo das comunidades indígenas não é pouca coisa. A Bolívia sempre foi um país um tanto paradigmático. A revolução dos camponeses e mineiros de estanho em 1952 foi uma das quatro revoluções latino-americanas verdadeiramente populares do século 20 (ao lado das do México, Cuba e Nicarágua). Em meados dos anos 60, trágica e equivocadamente, o país foi escolhido por Fidel Castro, Che Guevara e Régis Debray como uma plataforma de lançamento de movimentos guerrilheiros na América do Sul. E a Bolívia foi, ao lado do Chile, pioneira na introdução das "reformas estruturais", ou seja, a versão tropical da política econômica de Reagan, em meados dos 80.

Aconselhado por Jeff Sachs, Víctor Paz Estenssoro, o idoso líder da Revolução de 1952, tentou um dos mais radicais "tratamentos de choque" contra a hiperinflação e depois contra a pobreza extrema, inicialmente com sucesso. Ao longo do tempo, nenhum dos choques funcionou bem, mas ambos se tornaram símbolos para esforços análogos em outros lugares. De modo similar, as campanhas de erradicação de drogas dos EUA freqüentemente citam ou repetem algo que, de uma certa perspectiva, foi visto como um enorme sucesso: a substituição de cultivos e a intervenção militar na região de Chapare, perto de Cochabamba, também a partir de meados dos anos 80. De fato, a área de plantio de coca diminuiu - mas foi simplesmente transferida para o Vale do Alto Huallaga, no Peru, deixando para trás um grande número de produtores furiosos e empobrecidos na Bolívia. Entre eles, é claro, estava Evo Morales.

Sua ascensão à presidência, com quase 55% dos votos e uma maioria no Legislativo, bem pode ter implicações fora do país, para a região e para as relações entre EUA e América Latina.

Há uma tendência esquerdista na América Latina hoje, mas ela não é homogênea. Os partidos dos líderes de esquerda que vêm de uma velha tradição comunista, socialista ou castrista (à exceção do próprio Fidel) tendem a ter cruzado a fronteira da economia de mercado, da democracia representativa, do respeito aos direitos humanos e das posições geopolíticas responsáveis. Ricardo Lagos e e sua sucessora, Michelle Bachelet, no Chile, Lula no Brasil e talvez até mesmo Tabaré Vázquez no Uruguai pertencem a esse grupo. Mas aqueles cujas raízes mergulham profundamente na tradição populista latino-americana, como Hugo Chávez na Venezuela, Néstor Kirchner na Argentina, Andrés Manuel López Obrador no México e Morales na Bolívia, pertencem a outra categoria. Estão muito menos convencidos dos imperativos da globalização e da economia ortodoxa, do valor intrínseco da democracia e do respeito aos direitos humanos e gostam, mais que de qualquer outra coisa, de atormentar a Casa Branca e, particularmente, seus atuais ocupantes.

Há uma lógica neste comportamento. A "nova esquerda" que vem da "velha esquerda" não só se recriou depois de experimentar em primeira mão os desastres do antigo bloco soviético e de Cuba. Ela tem uma agenda doméstica que volta a suas raízes: combater a pobreza, reduzir a desigualdade, melhorar a saúde, a habitação e a educação, etc. Sua agenda externa pode ocasionalmente levá-la a discordar de Washington - o Chile fez isso no Iraque, o Brasil faz no comércio -, mas sem estridência. Já a esquerda populista não tem exatamente uma agenda doméstica - o populismo raramente a tem, a não ser a de distribuir ou gastar dinheiro com fins políticos -, mas reforça suas credenciais esquerdistas à maneira antiga, graças a uma política externa anti-EUA e pró-Havana.

Com toda a probabilidade, isto é o que Morales fará na Bolívia. Ele não tem muita margem de manobra em questões como o gás natural, a ajuda americana e de outras fontes estrangeiras, a dívida externa, o apoio do Banco Mundial, etc. Ir longe demais em qualquer rumo não só afastará a ajuda e os investimentos estrangeiros, como também poderá intensificar as forças centrífugas, quase separatistas, que atuam nas planícies do leste do país, mais prósperas, ao redor de Santa Cruz.

São necessários esforços enormes para combater a pobreza extrema na Bolívia - o país mais pobre do hemisfério, ao lado do Haiti. Mas também aqui os resultados não serão espetaculares no curto prazo.

Assim, Morales fará o que os populistas dessa categoria sempre fazem: atacar Washington e agradar a sua base eleitoral, isto é, os plantadores de coca de Chapare, onde ele iniciou a carreira política. Com os EUA, Morales começou de modo inequívoco. Suas primeiras viagens ao exterior foram para Havana e Caracas, e ele fará o possível para se incluir no chamado "eixo do bem" fundado por Fidel e Chávez. E, ao negar-se a continuar os programas de erradicação da coca, anunciando em vez disso que quer aumentar a área de cultivo, pois a folha de coca é um artigo de consumo tradicional nos planaltos bolivianos, Morales acerta duas contas de uma vez: escolhe uma rota de colisão "politicamente correta" com Washington e agrada a sua base mais extrema, algo que George W. Bush entende bem.

Mas, no fim das contas, é improvável que Morales ressuscite Che Guevara ou se transforme num Fidel andino. Seu país faz fronteira com outros quatro, é tragicamente pobre (embora rico em reservas de gás natural), depende dramaticamente de ajuda externa e tem uma história de instabilidade como a de nenhuma outra nação da América Latina. Se os EUA se contiverem e o Brasil finalmente assumir a responsabilidade pelos assuntos hemisféricos, Morales fará notícia, mas não História. Todos, espera-se, saberão a diferença. TRADUÇÃO DE ALEXANDRE MOSCHELLA