Título: Sem aldeia, sem saúde, sem saída
Autor: Roldão Arruda
Fonte: O Estado de São Paulo, 22/01/2006, Nacional, p. A4,6

Em Mato Grosso do Sul, guarani-caiovás perdem suas terras por decisão judicial e acampam em acostamento

Todos os dias, o índio Aquino da Silva Gonçalo mira o horizonte acima de campos devastados e caminhões de soja que levantam poeira e dirige preces a ñande ru marangatu (nosso pai sagrado, em guarani). Há mais de um mês, o índio, sua mulher e sete filhos repetem a rotina de espera, medo e humilhações ao lado de 700 companheiros da etnia guarani-caiová despejados de suas terras por decisão da Justiça em 15 de dezembro.

Vítima da política indígena, Aquino não tem mais aldeia e ocupa um barraco do acampamento à margem da Rodovia MS-384, que liga Bela Vista a Antônio João, a 400 quilômetros de Campo Grande (MS). O cenário é muito parecido ao de um acampamento do Movimento dos Sem-Terra (MST).

Há crianças esquálidas, com doenças respiratórias provocadas pela constante inalação de poeira. O nome da cidade onde fica o acampamento, a 75 quilômetros de Ponta Porã, é uma homenagem ao herói da Guerra do Paraguai, no século 19, o tenente Antônio João.

Depois da saída da aldeia, o índio Aquino perdeu casa, plantações e criações. "Tudo que quero é retornar para minhas terras e viver com minha família. Não quero vingança", disse.

Cercados por jagunços e expostos a todo tipo de risco à margem da rodovia, 200 famílias caiovás do acampamento são protagonistas do maior conflito de terras indígenas dos últimos anos no País. O contestado documento "Inventário de uma Infâmia", divulgado dias atrás pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), diz que o número de índios assassinados no País saltou de 7 casos, em 2002, para 38 no ano passado.

Só nos três primeiros anos do governo Lula, conforme o documento, ocorreram 106 mortes violentas, quase o dobro das 58 mortes registradas em todo o segundo mandato do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Ainda conforme o levantamento, outros 136 índios morreram em 2005 por falta de atendimento médico, fome e desleixo do poder público.

As estatísticas incluem a morte de 86 crianças. Desse total, 32 crianças indígenas morreram em Mato Grosso do Sul. O número de suicídios, segundo o levantamento, subiu de 18 em 2004 para 29 em 2005, quase todos relacionados à desagregação cultural, resultado do interminável conflito de terras.

Os guarani-caiovás somam uma população de 12 mil índios, distribuídos em mais de 30 aldeias assentadas em diminutas reservas em volta das cidades do sul de Mato Grosso do Sul.

Para o Cimi, o governo Lula decepciona em todos os quesitos nessa área e ostenta a marca de ser o que menos demarcou terras indígenas nos últimos 40 anos. Desde o governo Figueiredo (1979-1985), eram demarcadas em média 14 áreas indígenas por ano. A média caiu para seis áreas no governo atual.

VARGAS

A situação na região em que hoje é Mato Grosso do Sul começou a mudar no governo Vargas, quando se iniciou gigantesco processo de colonização agrícola sem levar em conta que as terras tinham dono, os índios. À luz da Constituição de 1988, eles passaram a exigir direitos.

Em outubro de 2004, na pressa de resolver o conflito e baseado em laudo antropológico questionável, o governo Lula demarcou 9,3 mil hectares da reserva onde Aquino vivia e menos de seis meses depois, indiferente ao clima conflituoso, promoveu a homologação. Os índios se apressaram em ocupar a terra, mas em novembro de 2005 o Supremo Tribunal Federal deu liminar em favor dos fazendeiros que detêm títulos de propriedade da área há mais de 50 anos. E criou-se a confusão.