Título: Mínimo fiscalmente irresponsável
Autor: Roberto Macedo
Fonte: O Estado de São Paulo, 26/01/2006, Espaço Aberto, p. A2

Com o olho na eleição e a cabeça na irresponsabilidade fiscal, o governo Lula anunciou um "acordo" com centrais sindicais, daí resultando o valor de R$ 350 para o salário mínimo a partir de abril. Acordo mesmo foi o que armou esse palco de "negociação" para manter o assunto na mídia e receber ampla divulgação.

Fosse a negociação autêntica, dela deveriam ter participado, com influência sobre seus resultados, representantes dos empregadores que vão pagar a nova conta do mínimo como salário, tanto no setor privado como no público, no qual Estados e municípios das regiões mais pobres do País terão grandes dificuldades de enfrentá-la. O novo mínimo representa um reajuste nominal de 16,7%, que em abril significará um aumento real (descontada a inflação desde o último reajuste) próximo de 11,5%, o maior desde 1995.

Do lado dos trabalhadores estavam as centrais sindicais. O grande tema, contudo, dizia respeito não tanto a trabalhadores ativos, mas a pensionistas e aposentados cujos benefícios do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) têm como piso o salário mínimo. São hoje 15,7 milhões de pessoas, um número que aumentará, pois quem atualmente ganha um pouco acima do mínimo (R$ 300) também será alcançado pelo novo valor, já que o reajuste do que ganham os demais pensionistas e aposentados usualmente cobre apenas a inflação. Eles também ficaram de fora das "negociações", mais uma vez vão protestar e, provavelmente, ficar nisso.

Na realidade, o governo deu o que quis conforme seus parâmetros de irresponsabilidade fiscal, pois não tem o dinheiro que distribuiu. O déficit do INSS, divulgado no mesmo dia, foi recorde no ano passado, quando atingiu R$ 37,6 bilhões, ou cerca de 2% do produto interno bruto (PIB). No ano, o déficit cresceu 11%, aproximadamente o dobro da inflação. Com o anunciado reajuste, estima-se um déficit de R$ 50 bilhões este ano. Nas condições atuais, responsabilidade fiscal seria dar um inevitável reajuste para cobrir a inflação, mais o crescimento do PIB per capita.

Como se foi muito além, o forte aumento terá graves efeitos na economia via seu impacto nas finanças públicas. Em princípio, ele contribui para tornar a carga tributária inflexível para baixo e para ampliar a dívida pública. Neste caso, o efeito é mascarado pelo uso recorrente, na avaliação dessas finanças, do conceito de resultado primário (receitas menos despesas do governo, exceto juros). Esse resultado mostra um valor positivo, mas, contados os juros, o resultado final é sempre um déficit. Isso leva muita gente a acreditar que o déficit final vem dos juros, mas ele vem de gastos superiores às despesas em termos gerais. Assim, se entre outros desequilíbrios o do INSS não fosse tão grande, maior seria o superávit primário e menor o déficit final que amplia a dívida pública.

Para contornar esse impacto do mínimo, o governo deverá conter outras despesas e/ou impedir que cresçam proporcionalmente ao aumento da arrecadação. Entre elas usualmente estarão os investimentos em obras públicas, indispensáveis ao crescimento econômico do País. Nas estradas federais, por exemplo, o governo hoje tapa buracos no último ano de mandato, mas teria feito muito mais, não fossem os buracos que amplia em contas como a do INSS.

Noutro efeito, a decisão sobre o mínimo é inconsistente com a política antiinflacionária do Banco Central (BC). O novo valor terá algum efeito inflacionário, pois custos empresariais serão afetados e a oferta de bens e serviços não crescerá tão rapidamente como a demanda desses muitos milhões de pessoas que, de um mês para outro, terão seus rendimentos aumentados em 16,7%. Assim, provavelmente o BC retardará no tempo e/ou na magnitude seu movimento atual de redução da taxa básica de juros, o que repercutirá desfavoravelmente sobre o custo da dívida pública e sobre a economia.

A decisão do governo também esburacará as contas dos Estados e municípios mais pobres. Em Brasília, o presidente da Confederação Nacional dos Municípios, Paulo Ziulkoski, disse que o aumento "acordado" (evidentemente, com ele não foi) provocará um gasto extra de R$ 1,1 bilhão nas prefeituras. Com isso o número das que gastam com pessoal mais do que o permitido pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) deve passar de 363 para 850. A LRF é uma lei federal, mas como cobrar seu cumprimento na esteira de uma decisão presidencial que, apesar de legal, é também fiscalmente irresponsável?

Noutra dimensão dos vários impactos da decisão, estudiosos da política social do governo federal vêm apontando que esta tem um viés previdenciário, particularmente agravado nos últimos anos no caso dos benefícios vinculados ao mínimo. Ora, com isso menos recursos são destinados à educação básica, sacrificados no altar das conveniências políticas, pois crianças não votam.

Ponderando todos esses custos, o leitor poderia perguntar pelos benefícios. Inegavelmente, milhões de pessoas ganharão no curto prazo, mas à custa de outras e de si mesmas, hoje e no futuro. Neste, efeitos como os apontados exercerão sua força, anulando, ao menos em parte, o que ganharam essas pessoas e reduzindo a perspectiva de maiores ganhos, pois a economia será prejudicada ao se tornarem mais difíceis as soluções de problemas como a alta carga tributária, a elevada dívida pública e os enormes juros.

A propósito, no mesmo dia em que a decisão foi anunciada, a Organização das Nações Unidas previu que a economia brasileira vai crescer apenas 3% este ano, ficando na pior posição entre os principais países emergentes, num campeonato em que há tempos o Brasil já está na segunda divisão. Enquanto insistir em jogadas como essa, vai continuar como perdedor.