Título: Atravessadores da terra
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 26/01/2006, Notas e Informações, p. A3

Se a reforma agrária não tem dado certo por vários motivos, entre os quais a falta de preparo, no trabalho da terra, daqueles que são arregimentados pelos "movimentos sociais" (especialmente o Movimento dos Sem-Terra - MST) nas periferias urbanas para ocupar terras invadidas, ou a falta de estrutura técnica e educacional para incentivo à produção rural familiar, certo é que os programas governamentais de assentamento também têm sido prejudicados pelos atravessadores, aqueles que recebem terra desapropriada com dinheiro público não para cultivá-la, mas para vendê-la ou arrendá-la a terceiros, em operações de flagrante ilegalidade. Bom exemplo dessa grave distorção é dado em assentamentos do Pontal do Paranapanema, oeste do Estado de São Paulo - de que dá conta matéria publicada em nossa edição de segunda-feira.

Apesar de o Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp) já ter aberto, há um ano e meio, sindicância para apurar a transferência irregular de lotes naquela região, a prática continua ocorrendo, inclusive no Assentamento São Bento, em Mirante do Paranapanema, considerado modelo pelo MST. A reportagem ilustra bem a situação com o caso de um ex-técnico do Incra que já obtivera um dos lotes irregularmente - já que era solteiro e tinha emprego -, arrendou-o a um sem-terra, para ficar com a metade do rendimento nele gerado, mantendo de fachada sua casa de alvenaria (construída com dinheiro público) com móveis, o que obrigara a família arrendatária a abrigar-se em barraco de madeira por ela montado - família essa que, prestes a ser expulsa da terra pelo "proprietário", já abandonou sua lavoura de mandioca. Outros casos são relatados por um assentado de 73 anos, que diz ser grande o numero de lotistas que venderam ou arrendaram as glebas: "Dos pioneiros aqui, sobraram eu e mais meia dúzia" - informou.

O próprio MST enviou ofícios ao Itesp, denunciando as vendas e transferências irregulares de lotes. O instituto estadual informou que a sindicância aberta em agosto de 2004, para apurar tais denúncias, ainda não foi encerrada - pelo que já se deduz a extensão das irregularidades.

Mas será que não haveria meios de fiscalização, para impedir a continuidade dessa prática, mesmo antes de encerradas as investigações de casos passados? Porque se assim não for, jamais haverá interrupção dessa ilegalidade. E como todos os que receberam lotes do poder público certamente estão cadastrados, qual seria a maior dificuldade em comprovar, in loco, se estes estão ocupando seus lotes - ou se são outras pessoas as que lá estão?

O órgão estadual da reforma agrária, do qual alguns funcionários têm intermediado as transferências - segundo assentados informaram à reportagem -, estuda a possibilidade de tornar legal o pagamento das benfeitorias ao assentado que desiste do lote. O valor das benfeitorias seria calculado pelos técnicos do órgão e obedeceria à ordem dos inscritos. Mas essa é uma prática ilegal, que já virou regra no Pontal. Será que sua legalização não irá estimular ainda mais a atuação dos atravessadores?

Na medida em que se admite a transferência onerosa - a que título seja - da terra de um assentado, obtida pela doação pública, estar-se-á distorcendo o princípio fundamental da reforma agrária, que é a outorga pública da posse da terra a quem precise e tenha condições de nela produzir. Estar-se-á também introduzindo, "oficialmente", um tipo pernicioso de especulação imobiliária no meio rural.

Segundo o Itesp, desde o início da sindicância foram realizadas várias audiências públicas, para esclarecer os assentados. Em 2005 foram expedidas 218 notificações para ocupantes irregulares - arrendatários ou compradores dos lotes originais. Desse total, 69 tiveram a situação regularizada e em 8 casos já houve a retomada do lote, com a exclusão dos assentados pela prática de irregularidades.

Como se vê, é possível a atuação do poder público, nesse setor, chegar a resultados concretos. O problema reside na lentidão dessa atuação, que se torna um fulcro de desilusão - e frustração - de tanta gente, que nutre o sonho da posse da terra para trabalhar, mas que é atravessada pelos que só pensam em da terra tirar o melhor proveito, sem nenhum esforço de trabalho ou produção.