Título: O Grande Construtor
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Fonte: O Estado de São Paulo, 26/01/2006, Notas e Informações, p. A3

Na solenidade de assinatura do projeto da ferrovia Litorânea Sul, na terça-feira, o presidente Lula novamente se proclamou o demiurgo do Brasil do futuro, modernizado e desenvolvido. Dessa vez, recitou o que seriam as suas proezas na expansão da infra-estrutura nacional, em contraste com o que teria sido a inércia da administração anterior, para afirmar que esse novo Brasil "já está em construção" - não tendo sido necessário que acrescentasse, por óbvio, quem é o Grande Construtor. (Em outras circunstâncias, diante de outros públicos, entra em cena o Grande Benfeitor ou o Grande Inovador.)

Mas há limites mesmo para a vanglória, quando atenta rombudamente contra a verdade singela dos fatos, configurando uma modalidade de apropriação indébita - de realizações alheias ou de iniciativas que tornaram possível as que reivindica para si. A retórica lulista destinada a apequenar o passado e engrandecer o presente, em matéria de políticas de infra-estrutura, é um caso exemplar. O problema existe até quando se queira tomar pelo valor de face os números que caracterizariam os ingentes esforços do atual governo e a apontada pasmaceira daquele ou daqueles que o precederam.

Diz o presidente que a malha ferroviária nacional cresceu em três anos 70% a mais do que nos 18 anos anteriores. Faltou dizer que pelo menos a condição necessária para isso foi a desestatização do setor, empreendida pelo governo Fernando Henrique contra a encarniçada - e cabeçuda, Lula hoje não há de negar - resistência do partido do qual era o inquestionado condottiere. O presidente, que deu de atacar os críticos de sua peregrinação eleitoral pelo País com o argumento de que ninguém há de despojá-lo do direito de colher o que plantou, bem que poderia ter a decência elementar de reconhecer lhanamente que nem tudo que apregoa colher resultou do seu lavor.

Isso quando o uso do termo colheita talvez tenha algum fundamento. Não é, definitivamente, o caso do setor rodoviário, de que Lula também se ocupou na mesma solenidade. Ele disse que, em razão de outros presidentes terem deixado de preparar adequadamente o País para o crescimento, as estradas ficaram "abandonadas por tanto tempo". E, dado que "todo dia tinha uma crítica às rodovias, resolvemos fazer uma operação de guerra", emendou. "Aí, os que criticavam os buracos agora criticam porque estamos tapando os buracos." Devagar com o andor.

Primeiro, técnicos insuspeitos asseguram que a Operação Tapa-Buraco equivale a enxugar gelo. Segundo, se é verdade que a administração Fernando Henrique fez menos do que deveria para modernizar o sistema rodoviário federal, é também verdade que a administração Lula fez nada. Terceiro, o governo passado tomou uma decisão essencial que se reflete no presente: graças à abertura do setor à época, praticamente os únicos trechos da malha sem buracos a tapar são os dos concessionários privados.

Pior foi a autolouvação pelos supostos progressos no campo energético, graças aos quais, entre outras coisas, "o Brasil vai, logo, logo, ser um exportador (líquido) de petróleo". Dos empresários que ouviam o presidente, os que tivessem lido neste jornal, no mesmo dia, o artigo Onda populista na energia em 2006, dos professores Adriano Pires e Rafael Schechtman, diretores do Centro Brasileiro de Infra-Estrutura, decerto podiam avaliar a distância entre palavras e fatos. Os autores ressaltam que a produção doméstica de petróleo cresceu em média quase 12% nos cinco anos anteriores à posse de Lula e que depois regrediu para menos de 5%, com queda de 3% em 2004 em relação a 2003.

Isso, explicam, porque anteriormente a gestão da Petrobrás era menos política e mais empresarial - o contrário do que se tornou. Em conseqüência, se o preço do petróleo aumentar no mercado internacional, a Petrobrás segurará o preço dos derivados. Também no setor elétrico as decisões nas estatais foram politizadas. As empresas da Eletrobrás "estão sendo usadas para cumprir a promessa populista de manter tarifas baixas de eletricidade". Essa clara sinalização das intenções do governo tem o efeito previsível de afastar os investidores privados dos leilões de energia nova. O resultado, prevê o artigo, "será o atraso nas obras, o aumento no custo da energia e o risco de desabastecimento". Isso é que é "preparar adequadamente o País para o crescimento"?