Título: Superávit não é o problema
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Fonte: O Estado de São Paulo, 26/01/2006, Notas e Informações, p. A3

O Brasil teve um robusto superávit de US$ 14,2 bilhões na conta corrente do balanço de pagamentos, no ano passado, e para 2006 o mercado financeiro prevê um excedente de US$ 8,15 bilhões, ainda considerável. É bom ou mau ter resultados como esses? Há alguns anos, quando as exportações estavam estagnadas e havia um buraco na conta corrente, a conversa mais comum era sobre a vulnerabilidade externa do País. Hoje, ao contrário, se volta a falar sobre a conveniência de um déficit, não muito grande, para absorção de poupança estrangeira e ampliação do investimento produtivo.

Há bons argumentos a favor dessa idéia, mas é preciso ter cuidado. O Brasil já pagou muito caro por equívocos graves na gestão do balanço de pagamentos. A tese é simples. Um país em desenvolvimento poderá crescer mais velozmente se a sua poupança interna, em geral insuficiente para suas necessidades, for complementada pelo ingresso de capitais estrangeiros. O esforço para investir em máquinas, equipamentos e instalações produtivas poderá resultar numa demanda maior do que a oferta interna de recursos.

O problema será resolvido se o País puder financiar um déficit nas transações externas de bens e serviços. Esse financiamento pode ser feito em parte por meio de endividamento e em parte pela absorção de capital de risco. Com base nesse raciocínio, pode-se dizer que seria benéfico para o Brasil um déficit em conta corrente, moderado e facilmente controlável, algo da ordem de uns 2% do PIB.

Essa estratégia foi usada na época do milagre econômico, mas o endividamento saiu de controle e o resultado foi uma crise, com moratória e suas conseqüências. Foi retomada na primeira fase do Plano Real. Entre 1994 e 1998 as importações cresceram velozmente, favorecidas pela abertura atabalhoada, pela valorização cambial e pelo excesso de gastos oficiais. Nova crise estourou em janeiro de 1999. A diferença entre os dois episódios é que no primeiro houve de fato grandes investimentos. Mas faltou prudência quando as condições internacionais mudaram. Outros países se adaptaram. O Brasil, não.

No segundo episódio, houve um equívoco desde o começo. As importações cresceram não porque o investimento produtivo estivesse em expansão, mas porque a queda abrupta da inflação estimulou o consumo e o governo continuou gastando sem controle. O Brasil acumulou um enorme déficit em conta corrente - mais de US$ 30 bilhões em 1998.

A situação, hoje, tem características muito diferentes das observadas noutras situações. As exportações têm crescido mesmo com o câmbio valorizado, porque a economia é muito mais competitiva. A situação cambial poderá criar problemas sérios, dentro de algum tempo, mas um ajuste abrupto não seria a solução. As importações têm crescido, impulsionadas pelo câmbio, mas em ritmo insuficiente para fazer o dólar subir. Tem-se proposto a redução de barreiras tarifárias, para tornar as importações ainda mais acessíveis e a idéia, em princípio, é boa. Mas também nesse caso é preciso ir com cuidado, para não expor produtores nacionais já prejudicados por maus impostos, custos elevados de logística e financiamento inadequado.

Mas o mais importante é que um déficit em conta corrente só é benéfico quando resulta de uma expansão do investimento produtivo. Não há expansão, neste momento. E que fatores têm limitado o investimento? No setor público, apesar da escassez de recursos, o principal obstáculo é a incompetência gerencial do governo, incapaz até de aplicar as verbas disponíveis.

No setor privado, o investimento aumentou durante algum tempo, mas perdeu impulso porque as perspectivas de crescimento se tornaram menos animadoras. A política industrial não deslanchou, o custo Brasil continua proibitivo e a participação privada nos gastos com infra-estrutura tem sido prejudicada por erros estratégicos do governo.

Um déficit em conta corrente não pode ser um objetivo. Tem de ser uma conseqüência de um impulso de crescimento econômico. Aí está o problema, não na conta corrente do balanço de pagamentos.