Título: O desafio de dobrar o Irã
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Fonte: O Estado de São Paulo, 21/01/2006, Notas e Informações, p. A3

O Irã é o que o presidente Bush dizia que era o Iraque para justificar a aventura da sua invasão - um país cujo regime está empenhado em produzir a arma por excelência de destruição em massa, a bomba atômica. Durante mais de uma década, a teocracia de Teerã conduziu um programa nuclear clandestino, violando o Tratado de Não-Proliferação (TNP), do qual o Irã é signatário, e burlando o guardião do seu cumprimento, a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), da qual é membro. Sob pressões européias (Washington e Teerã, como se sabe, cortaram relações em 1979), combinadas com promessas de ajuda econômica e investimentos, o governo iraniano aceitou há dois anos e meio que a agência lacrasse as instalações destinadas a gaseificar urânio, etapa crítica do chamado ciclo nuclear, enquanto negociava as recompensas pelo abandono do projeto.

Pensou-se numa joint venture que permitiria que o Irã recebesse urânio enriquecido da Rússia para a geração de eletricidade. Com isso, se tomaria pelo valor de face o esfarrapado pretexto de Teerã, um dos maiores produtores mundiais de petróleo e gás, segundo o qual as instalações nucleares se destinariam apenas a suprir as necessidades energéticas do país. Na semana passada, porém, mais uma vez confirmando que os seus dirigentes merecem tanta confiança quanto um negociante espertalhão do mercado persa, o Irã rompeu os lacres da AIEA, anunciando a retomada unilateral das suas "pesquisas" para o enriquecimento de urânio. Desse modo, rompeu também as esperanças de uma saída consensual para a crise. Desta vez, ao contrário do que sucedeu quando da ofensiva contra Saddam Hussein, União Européia e EUA estão de pleno acordo: as conversações do bloco europeu com Teerã foram suspensas e o colegiado de 35 membros que dirige a AIEA está sendo instado a encaminhar a questão ao Conselho de Segurança (CS) da ONU para a eventual aplicação de sanções ao transgressor.

A secretária de Estado americana tornou a dizer na quarta-feira que "o Irã não pode ter uma arma nuclear". Não pode, de fato. Impedi-lo é que são elas. Primeiro, no que depender da Rússia e da China, membros do CS com poder de veto, se a questão chegar ao organismo, o resultado será apenas uma advertência. Segundo, mesmo se Moscou e Pequim se abstiverem de vetar uma resolução que contenha a ameaça de sanções econômicas ao Irã, o país poderá, em represália, reduzir as exportações de petróleo, o que elevaria as suas cotações a níveis altíssimos, com efeitos calamitosos para a economia mundial. Restaria, em tese, o bombardeio das instalações nucleares iranianas, por sinal estrategicamente dispersas e bem protegidas.

Mas, salvo desdobramentos imprevisíveis, o presidente Bush queimou as alternativas militares ao invadir o país errado. Depois da derrota na Guerra do Golfo, o Iraque tinha perdido as condições de ameaçar os EUA e os vizinhos - só que Saddam precisava fingir o contrário para não se desmoralizar e ser deposto. Hoje, para júbilo dos aiatolás de Teerã, Washington ficou com escassos meios de aplicar ao Irã a Doutrina Bush, a da neutralização preventiva de ameaças potenciais à segurança dos EUA e seus aliados, invocada para atacar um Iraque em suposto conluio com a Al-Qaeda.

O Irã - este sim patrocinador de movimentos terroristas - é um país muito maior e mais populoso. Além disso, os americanos estão atolados no Iraque, numa ocupação que custa uma fábula, restringe a força armada capaz de ser mobilizada para outra empreitada do gênero e perdeu grande parte do apoio interno. A Rússia e a China são importantes parceiros comerciais iranianos e só teriam a perder com um replay da ação de 2003. Sem falar na maioria xiita iraquiana, que ascendeu ao poder na nova ordem implantada pelos americanos, ampla parcela da qual se identifica com os seus correligionários fundamentalistas do outro lado da fronteira.

Parece uma falácia, portanto, a tese de que as ambições nucleares do Irã podem ser interceptadas "a um custo mínimo", como sustenta o historiador Niall Ferguson, em artigo transcrito quinta-feira no Estado. Ele defende uma solução militar para o problema iraniano - como se ela já não tivesse sido desperdiçada na eliminação de um falso problema.