Título: O anti-semitismo vai derreter-se no ar?
Autor: Ottaviano De Fiore
Fonte: O Estado de São Paulo, 21/01/2006, Espaço Aberto, p. A2

Meu velho amigo Gabriel Bolaffi afirmou nesta página que a partir dos anos 80 o anti-semitismo "derreteu-se no ar". Sobrariam apenas "resíduos" e os judeus estariam "a caminho da assimilação". Desconfio que ele se engana. Ao que tudo indica, o anti-semitismo é uma ideologia endêmica, duradoura e cíclica. Como os vulcões, ele passa por fases de latência para explodir periodicamente.

Os judeus foram expulsos em massa da Inglaterra lá pelo século 13. Trezentos anos depois, Shakespeare - que graças a essa expulsão muito anterior a seu nascimento provavelmente nunca vira um judeu - escreveu O Mercador de Veneza, uma peça anti-semita. Alguns críticos procuram "salvar" Shakespeare, declarando que a peça, "na realidade", não seria anti-semita. Leia a peça. Parece aquele filme nazista, O Judeu Süss. Como Wagner, Shakespeare era um gênio e, também, um anti-semita, como a maioria dos cristãos de seu tempo.

No Ocidente não é preciso conhecer judeus para ser anti-semita. Quase não havia judeus nas pequenas cidades austríacas e alemãs, de onde saiu a maioria dos militantes nazistas. A ideologia sobrevive mesmo sem a presença de judeus reais. Hoje, com a universalização da cultura ocidental, esse mito político expandiu-se até o Extremo Oriente, onde também quase não há judeus. Poucos anos atrás, durante uma crise econômica na Malásia (!), o presidente de plantão culpou quem? Os "judeus".

Todas as nações do centro-leste europeu possuem uma alta porcentagem de anti-semitismo latente e manifesto. Converse com os motoristas de táxi. No Brasil, por sorte, ele é apenas latente. Conheço, entretanto, políticos, comerciantes, dentistas, empregadas domésticas e artistas que, quando menos se espera, emitem com naturalidade opiniões anti-semitas. Não na frente de judeus - somos um povo cordial - o que talvez distorça a percepção de Bolaffi. Mas eles se sentem desinibidos diante dos não-judeus.

O anti-semitismo é diverso dos demais racismos, que são voltados contra os "de baixo", como os imigrantes. Hoje em dia, no Brasil ninguém tem mais preconceitos contra italianos, poloneses ou japoneses, como era comum na minha infância. Os japoneses foram quase promovidos a "raça superior". Permanece certo racismo contra os nordestinos, mas de forma menos desabrida do que nos anos 50 e 60. Quanto aos negros, faz décadas que, no meu ambiente, deixei de ouvir observações racistas (exceto em Salvador). Hoje, entre pessoas educadas, demonstrar preconceito contra negros é de mau gosto. Sugere grosseria. O anti-semitismo, ao contrário, continua inalteradamente "normal".

A durabilidade do anti-semitismo provém, creio, de seu conteúdo "social". Ao contrário dos outros racismos, que nascem do desprezo dos "de cima" pelos "de baixo", ele está imbuído do ressentimento social dos "de baixo" contra os "de cima". Dos iletrados contra os letrados, do povão contra as elites, dos pobres contra os ricos. Engels classificou o anti-semitismo como "o socialismo dos idiotas". De fato, os discursos dos hitleristas eram muito semelhantes aos dos socialistas, com a diferença de identificarem os judeus como o "capitalismo corruptor". Até o jovem Marx entrou nessa. Em A Questão Judaica, ele denuncia o judaísmo como sendo a essência do espírito capitalista.

Creio que o anti-semitismo só parece estar desaparecendo porque, neste momento, não há crise mundial que lance milhões de pessoas comuns no desespero. Antes da 1ª Guerra, o anti-semitismo também parecia em via de desaparecer. Entre 1880 e 1914, quantos judeus não se esforçaram pela "assimilação" de suas famílias? Como, entretanto, as crises da economia mundial são periódicas, desconfio que, assim que a próxima se manifestar, o anti-semitismo latente se tornará anti-semitismo militante.

Ninguém dirá que a culpa é dos negros, dos nordestinos ou de outros explorados, porque o anti-semitismo serve justamente para fornecer aos pobres e às classes médias um bode expiatório para seus males econômicos e para a "corrupção" dos valores tradicionais causada pelo avanço da modernização.

A ligação histórica dos judeus com o comércio, atividade notoriamente "maldita", tem certamente algo que ver com essa identificação. Prova-o o fato de que, na África, os "judeus" são os comerciantes indianos; na Indonésia, os comerciantes chineses; e, em Los Angeles, os comerciantes coreanos. Pouco importa que a maioria deles, como os próprios judeus, não seja realmente rica, mas remediada, que se mata de trabalhar para dotar os filhos de um diploma. Basta uma comoção social qualquer para que suas lojas sejam saqueadas e seus filhos doutores espancados e assassinados. Ou para que, como ocorreu com os indianos de Uganda, o governo lhes tome tudo o que "roubaram do povo" e os expulse do país. Isto é, os "judeus" inventados pelos anti-semitas ocidentais não são sequer uma invenção muito original. São a versão local de um anticapitalismo primitivo, que existiria mesmo sem o Estado de Israel.

De fato, os judeus da diáspora bem que poderiam ajudar os palestinos em vez de permitir que Israel continue a explorá-los e a empurrá-los para o terrorismo (que os judeus também praticavam quando os pobres e oprimidos eram eles). Os estados fascistas e teocráticos árabes não vão ajudar os palestinos porque preferem mantê-los pobres e revoltados. Para eles, a guerra santa contra Israel serve principalmente para continuarem a oprimir seus próprios povos. Por acaso os gorilas argentinos provocaram a guerra com a Inglaterra para tornar os argentinos mais prósperos?

Entretanto, o cruel e iníquo conflito com os palestinos tem pouco que ver com o anti-semitismo ocidental. Os judeus certamente não precisam de meus conselhos. Mas, se me pedissem, ele não seria "apostem tudo na assimilação". Seria "cuidem-se, porque é bem provável que o anti-semitismo esteja apenas em fase de dormência". Em caso de uma crise mundial longa e profunda, ele bem que pode voltar a arreganhar os dentes. Espero muito, muito mesmo, estar enganado. Mas a razão é frágil e a História é uma deusa cruel.