Título: Chegamos à meia-vergonha
Autor: Mauro Chaves
Fonte: O Estado de São Paulo, 21/01/2006, Espaço Aberto, p. A2

Não tendo sido possível acabar com a indecência das férias parlamentares de três meses, pelo menos conseguimos reduzi-las em quase a metade. E, havendo agora o rigoroso desconto de salário dos deputados que não comparecerem nos dias de votação - ou seja, na meia semana útil, que vai da tarde de terça-feira a quinta-feira -, o Legislativo brasileiro estará, finalmente, meio moralizado. Quer dizer, chegamos à meia-vergonha, o que já significa salutar mudança. Não sejamos excessivamente ambiciosos. Não podendo tudo, contentemo-nos com a metade. Quem sabe nosso país também possa, em tantas outras coisas, dar ao mundo a exemplificação concreta do conceito aristotélico-tomista "in medio virtus" ("a virtude está no meio"), que combina perfeitamente com a nossa sabedoria popular, expressa no ditado "quem tudo quer tudo perde".

Depois do estafante trabalho dos integrantes da CPI dos Correios, já está anunciado por seu relator que os trabalhos serão interrompidos antes do prazo e que não será possível quebrar os sigilos de parlamentares suspeitos, porque isso era atribuição da finada e bem sepultada CPI do Mensalão, nem examinar de forma conclusiva toda a montanha de documentos e depoimentos arrebanhados, por falta de tempo. Então, é de se esperar que, graças à saudável pressão da opinião pública, tenhamos chegado à alvissareira meia-punição dos receptores de mensalão e usuários de caixa 2 - ou à punição de metade dos suspeitos, o que vem a dar no mesmo, pois de alguma forma estaremos, nesse campo, reduzindo a impunidade à metade.

Os países emergentes do mundo crescem 6% ao ano, enquanto nós estaremos nos esforçando, este ano, para crescer a metade, saltando de 2,5% para 3%. Por que precisaríamos copiar os outros e tentar chegar à média mundial, se temos nossa própria personalidade e soberania, que independem do que "está na moda" no mundo estrangeiro? Não importa o que pensem lá fora, o importante é adaptarmos os nossos programas econômicos e sociais à nossa realidade. Assim, por exemplo, se não houve jeito de fazer funcionar o Fome Zero, por que não devemos tentar o Fome 0,5? Se está difícil sustentar o Bolsa-Família, por que não podemos substituí-lo pelo Meia Bolsa-Família - ou Bolsa Meia-Família, que vem a dar no mesmo?

O Tapa-Buraco é, indiscutivelmente, o maior programa meia-boca (ou meia-sola) já realizado no País - e deve trazer ótimos resultados a médio prazo. Aqueles que desprezam os ganhos conquistados apenas pela metade deveriam refletir melhor sobre os valores sociais, econômicos e político-administrativos. Com efeito, o que dizer da possibilidade de se reduzir pela metade os índices de acidentes de trânsito? Será pouca coisa diminuir em 50% a mortalidade infantil? E quanto à poluição urbana, os desmatamentos e queimadas no meio rural, a emissão de gases causadores do efeito estufa, a destruição de ecossistemas - que tal se tudo isso fosse reduzido pela metade? Não haveria de ser um ecológico espetáculo?

Sem dúvida, a redução pela metade, em outros campos, haveria de aperfeiçoar muito nosso estado democrático de direito. Não seria muito mais eficiente a nossa Câmara dos Deputados se seus integrantes correspondessem à metade do número dos atuais - no caso, 256,5 (aí podendo o meio ser por demais visível)? Diga-se o mesmo quanto ao Senado - que teria muito mais agilidade na representação das unidades da Federação se seus membros não fossem mais do que 41 -, quanto às Pastas ministeriais - que, se fossem reduzidas à metade, talvez a população demorasse anos para perceber -, quanto aos nossos tribunais - caso em que poderia acabar a metade do nepotismo brasileiro - e assim por diante, o que significaria um enxugamento global de nossas instituições em prol da eficiência.

Talvez o grande problema do Brasil seja a idéia (certamente alienígena) de levar tudo a ferro e fogo, por inteiro. Nós somos o país do mais ou menos, da meia-cultura, do semi-analfabetismo, do meio-conserto, da meia-exigência, da meia-cobrança, da meia-tolerância. Deveríamos até erigir no meio da Praça dos Três Poderes um belo Monumento à Gambiarra - certamente com projeto assinado por Oscar Niemeyer, o grande mestre da semifuncionalidade arquitetônica. Pelo menos a metade de nossos homens públicos, chefes de governos e de partidos também é mestre em dizer suas meias-verdades, em argumentar com suas meias-lógicas e exibir suas meias-obras. Cada vez nos contentamos mais com a meia-certeza, a meia-fidelidade, a meia-honestidade.

Por falar em meio (e em arquitetura brasiliense), há uma peculiaridade em nossa Câmara dos Deputados. Nos plenários dos parlamentos de outros países, os representantes do povo costumam ficar em seus lugares, ouvindo os que estão falando na tribuna, fazendo-lhes apartes, ou dirigindo-se ao presidente da Casa, para questões de ordem, requerimentos ou comunicados. Aqui os parlamentares ficam todos amontoados naquele corredor no meio do plenário, em conversas contínuas, às vezes dando lautas gargalhadas, com ar de excitação de quem acabou de ganhar uma bolada (quem sabe ganhou mesmo), outras vezes com o desleixo de quem apenas mantém um papo furado para passar o tempo. Será que isso deve ser entendido como clima de negociação, próprio de um parlamento democrático? Médio.

Talvez fosse importante a sociedade brasileira compartilhar desse belo espírito de meio-termo, sem radicalismos, sem a ganância da totalidade. Então, para começar, que tal nos habituarmos a só pagar meio imposto?