Título: Deus Caritas Est
Autor: Ricardo Westin
Fonte: O Estado de São Paulo, 26/01/2006, Vida&, p. A13

INTRODUÇÃO

"Deus é amor, e quem permanece no amor permanece em Deus e Deus nele" (1 Jo 4, 16). Estas palavras da I Carta de João exprimem, com singular clareza, o centro da fé cristã: a imagem cristã de Deus e também a conseqüente imagem do homem e do seu caminho. Além disso, no mesmo versículo, João oferece-nos, por assim dizer, uma fórmula sintética da existência cristã: "Nós conhecemos e cremos no amor que Deus nos tem." (...)

(...) Dado que Deus foi o primeiro a amar-nos (cf. 1 Jo 4, 10), agora o amor já não é apenas um "mandamento", mas é a resposta ao dom do amor com que Deus vem ao nosso encontro. Num mundo em que ao nome de Deus se associa às vezes a vingança ou mesmo o dever do ódio e da violência, esta é uma mensagem de grande atualidade e de significado muito concreto. Por isso, na minha primeira Encíclica, desejo falar do amor com que Deus nos cumula e que deve ser comunicado aos outros por nós (...)

PARTE I

A Unidade do Amor na Criação e na História da Salvação

UM PROBLEMA DE LINGUAGEM

(...) O termo "amor" tornou-se hoje uma das palavras mais usadas e mesmo abusadas, à qual associamos significados completamente diferentes (...) Em toda esta gama de significados, porém, o amor entre o homem e a mulher, no qual concorrem indivisivelmente corpo e alma e se abre ao ser humano uma promessa de felicidade que parece irresistível, sobressai como arquétipo de amor por excelência (...)

EROS E ÁGAPE

Ao amor entre homem e mulher, que não nasce da inteligência e da vontade mas de certa forma impõe-se ao ser humano, a Grécia antiga deu o nome de eros. Diga-se desde já que o Antigo Testamento grego usa só duas vezes a palavra eros, enquanto o Novo Testamento nunca a usa: das três palavras gregas relacionadas com o amor - eros, philia (amor de amizade) e ágape - os escritos neotestamentários privilegiam a última, que, na linguagem grega, era quase posta de lado. Quanto ao amor de amizade (philia), este é retomado com um significado mais profundo no Evangelho de João para exprimir a relação entre Jesus e os seus discípulos. A marginalização da palavra eros, juntamente com a nova visão do amor que se exprime através da palavra ágape, denota sem dúvida, na novidade do cristianismo, algo de essencial e próprio relativamente à compreensão do amor. Na crítica ao cristianismo que se foi desenvolvendo com radicalismo crescente a partir do iluminismo, esta novidade foi avaliada de forma absolutamente negativa.

Segundo Friedrich Nietzsche, o cristianismo teria dado veneno a beber ao eros, que, embora não tivesse morrido, daí teria recebido o impulso para degenerar em vício. Este filósofo alemão exprimia assim uma sensação muito generalizada: com os seus mandamentos e proibições, a Igreja não nos torna porventura amarga a coisa mais bela da vida? Porventura não assinala ela proibições precisamente onde a alegria, preparada para nós pelo Criador, nos oferece uma felicidade que nos faz pressentir algo do Divino?

(...) Mas, será mesmo assim? O cristianismo destruiu verdadeiramente o eros? (...) O Antigo Testamento (...) não rejeitou de modo algum o eros enquanto tal, mas declarou guerra à sua subversão devastadora, porque a falsa divinização do eros, como aí se verifica, priva-o da sua dignidade, desumaniza-o (...)

(...) Fica assim claro que o eros necessita de disciplina, de purificação para dar ao homem, não o prazer de um instante, mas uma certa amostra do vértice da existência, daquela beatitude para que tende todo o nosso ser (...)

(...) O homem torna-se realmente ele mesmo, quando corpo e alma se encontram em íntima unidade; o desafio do eros pode considerar-se verdadeiramente superado, quando se consegue esta unificação. Se o homem aspira a ser somente espírito e quer rejeitar a carne como uma herança apenas animalesca, então espírito e corpo perdem a sua dignidade. E se ele, por outro lado, renega o espírito e conseqüentemente considera a matéria, o corpo, como realidade exclusiva, perde igualmente a sua grandeza (...)

(...) Mas, nem o espírito ama sozinho, nem o corpo: é o homem, a pessoa, que ama como criatura unitária, de que fazem parte o corpo e a alma. Somente quando ambos se fundem verdadeiramente numa unidade, é que o homem se torna plenamente ele próprio. Só deste modo é que o amor - o eros - pode amadurecer até à sua verdadeira grandeza (...)

AMOR MUNDANO

(...) Hoje não é raro ouvir censurar o cristianismo do passado por ter sido adversário da corporeidade; a realidade é que sempre houve tendências neste sentido. Mas o modo de exaltar o corpo, a que assistimos hoje, é enganador. O eros degradado a puro "sexo" torna-se mercadoria, torna-se simplesmente uma "coisa" que se pode comprar e vender; antes, o próprio homem torna-se mercadoria. Na realidade, para o homem, isto não constitui propriamente uma grande afirmação do seu corpo. Pelo contrário, agora considera o corpo e a sexualidade como a parte meramente material de si mesmo a usar e explorar com proveito. Uma parte, aliás, que ele não vê como um âmbito da sua liberdade, mas antes como algo que, a seu modo, procura tornar simultaneamente agradável e inócuo. Na verdade, encontramo-nos diante duma degradação do corpo humano, que deixa de estar integrado no conjunto da liberdade da nossa existência, deixa de ser expressão viva da totalidade do nosso ser, acabando como que relegado para o campo puramente biológico (...)

(...) Agora o amor torna-se cuidado do outro e pelo outro. Já não se busca a si próprio, não busca a imersão no inebriamento da felicidade; procura, ao invés, o bem do amado: torna-se renúncia, está disposto ao sacrifício, antes procura-o. Faz parte da evolução do amor para níveis mais altos, para as suas íntimas purificações, que ele procure agora o caráter definitivo, e isto num duplo sentido: no sentido da exclusividade - "apenas esta única pessoa" - e no sentido de ser "para sempre". O amor compreende a totalidade da existência em toda a sua dimensão, inclusive a temporal. Nem poderia ser de outro modo, porque a sua promessa visa o definitivo: o amor visa a eternidade. Sim, o amor é "êxtase"; êxtase, não no sentido de um instante de inebriamento, mas como caminho, como êxodo permanente do eu fechado em si mesmo para a sua libertação no dom de si e, precisamente dessa forma, para o reencontro de si mesmo, mais ainda para a descoberta de Deus (...)

(...) Surgiu a questão seguinte: se a mensagem sobre o amor, que nos é anunciada pela Bíblia e pela Tradição da Igreja, teria algo a ver com a experiência humana comum do amor ou se, pelo contrário, se opusesse a ela. A este respeito, fomos dar com duas palavras fundamentais: eros como termo para significar o amor "mundano" e ágape como expressão do amor fundado sobre a fé e por ela plasmado. As duas concepções aparecem freqüentemente contrapostas como amor "ascendente" e amor "descendente". Existem outras classificações afins como, por exemplo, a distinção entre amor possessivo e amor oblativo (amor concupiscentiae - amor benevolentiae), à qual, às vezes, se acrescenta ainda o amor que procura o próprio interesse (...)

(...) Na realidade, eros e ágape - amor ascendente e amor descendente - nunca se deixam separar completamente um do outro. Quanto mais os dois encontrarem a justa unidade, embora em distintas dimensões, na única realidade do amor, tanto mais se realiza a verdadeira natureza do amor em geral (... )

O AMOR DE DEUS

(...) Existe um único Deus, que é o Criador do céu e da terra, e por isso é também o Deus de todos os homens. Dois fatos se singularizam neste esclarecimento: que verdadeiramente todos os outros deuses não são Deus e que toda a realidade onde vivemos se deve a Deus, é criada por Ele (...)

(...) O amor apaixonado de Deus pelo seu povo - pelo homem - é ao mesmo tempo um amor que perdoa. E é tão grande, que chega a virar Deus contra Si próprio, o seu amor contra a sua justiça. Nisto, o cristão vê já esboçar-se veladamente o mistério da Cruz: Deus ama tanto o homem que, tendo-Se feito Ele próprio homem, segue-o até à morte e, deste modo, reconcilia justiça e amor (...)

(...) Dentre todas as criaturas, nenhuma pôde ser para o homem aquela ajuda de que necessita, apesar de ter dado um nome a todos os animais selvagens e a todas as aves, integrando-os assim no contexto da sua vida. Então, de uma costela do homem, Deus plasma a mulher. Agora Adão encontra a ajuda de que necessita (...)

Na base desta narração, é possível entrever concepções semelhantes às que aparecem, por exemplo, no mito referido por Platão, segundo o qual o homem originariamente era esférico, porque completo em si mesmo e auto-suficiente. Mas, como punição pela sua soberba, foi dividido ao meio por Zeus, de tal modo que agora sempre anseia pela outra sua metade e caminha para ela a fim de reencontrar a sua globalidade (...)

JESUS CRISTO

(...) O olhar fixo no lado trespassado de Cristo, de que fala João (cf. 19, 37), compreende o que serviu de ponto de partida a esta Carta Encíclica: "Deus é amor" (1 Jo 4, 8). É lá que esta verdade pode ser contemplada. E começando de lá, pretende-se agora definir em que consiste o amor. A partir daquele olhar, o cristão encontra o caminho do seu viver e amar.

(...) Jesus deu a este ato de oferta uma presença duradoura através da instituição da Eucaristia durante a Última Ceia. Antecipa a sua morte e ressurreição entregando-Se já naquela hora aos seus discípulos, no pão e no vinho, a Si próprio, ao seu corpo e sangue como novo maná (cf. Jo 6, 31-33). Se o mundo antigo tinha sonhado que, no fundo, o verdadeiro alimento do homem - aquilo de que este vive enquanto homem - era o Logos, a sabedoria eterna, agora este Logos tornou-Se verdadeiramente alimento para nós - como amor (... )

(...) No próprio "culto", na comunhão eucarística, está contido o ser amado e o amar, por sua vez, os outros. Uma Eucaristia que não se traduza em amor concretamente vivido, é em si mesma fragmentária. Por outro lado - como adiante havemos de considerar de modo mais detalhado - o "mandamento" do amor só se torna possível porque não é mera exigência: o amor pode ser "mandado", porque antes nos é dado (...)

(...) É preciso, enfim, recordar de modo particular a grande parábola do Juízo final (cf. Mt 25, 31-46), onde o amor se torna o critério para a decisão definitiva sobre o valor ou a inutilidade duma vida humana. Jesus identifica-Se com os necessitados: famintos, sedentos, forasteiros, nus, enfermos, encarcerados. (...) Amor a Deus e amor ao próximo fundem-se num todo: no mais pequenino, encontramos o próprio Jesus e, em Jesus, encontramos Deus (...)

É POSSÍVEL AMAR A DEUS?

(...) Resta uma dupla pergunta a propósito do nosso comportamento. A primeira: é realmente possível amar a Deus, mesmo sem O ver? E a outra: o amor pode ser mandado? Contra o duplo mandamento do amor, existe uma dupla objeção que se faz sentir nestas perguntas: ninguém jamais viu a Deus - como poderemos amá-Lo? Mais: o amor não pode ser mandado; é, em definitivo, um sentimento que pode existir ou não, mas não pode ser criado pela vontade (...) se destaca o nexo indivisível entre o amor a Deus e o amor ao próximo: um exige tão estreitamente o outro que a afirmação do amor a Deus se torna uma mentira, se o homem se fechar ao próximo ou, inclusive, o odiar. (...) O amor ao próximo é uma estrada para encontrar também a Deus, e que o fechar os olhos diante do próximo torna cegos também diante de Deus (...)

(...) Na história de amor que a Bíblia nos narra, Ele vem ao nosso encontro, procura conquistar-nos - até à Última Ceia, até ao Coração trespassado na cruz, até às aparições do Ressuscitado e às grandes obras pelas quais Ele, através da ação dos Apóstolos, guiou o caminho da Igreja nascente. Também na sucessiva história da Igreja, o Senhor não esteve ausente: incessantemente vem ao nosso encontro, através de homens nos quais Ele Se revela; através da sua Palavra, nos Sacramentos, especialmente na Eucaristia (...) No desenrolar deste encontro, revela-se com clareza que o amor não é apenas um sentimento. Os sentimentos vão e vêm. O sentimento pode ser uma maravilhosa centelha inicial, mas não é a totalidade do amor (...)

(...) É próprio da maturidade do amor abranger todas as potencialidades do homem e incluir, por assim dizer, o homem na sua totalidade. O encontro com as manifestações visíveis do amor de Deus pode suscitar em nós o sentimento da alegria, que nasce da experiência de ser amados (...)

(...) Revela-se, assim, como possível o amor ao próximo no sentido enunciado por Jesus, na Bíblia. Consiste precisamente no fato de que eu amo, em Deus e com Deus, a pessoa que não me agrada ou que nem conheço sequer. Isto só é possível realizar-se a partir do encontro íntimo com Deus, um encontro que se tornou comunhão de vontade, chegando mesmo a tocar o sentimento (...)

(...) Amor a Deus e amor ao próximo são inseparáveis, constituem um único mandamento. Mas, ambos vivem do amor preveniente com que Deus nos amou primeiro (...)

II PARTE

Caritas - A Prática do Amor pela Igreja enquanto "Comunidade de Amor"

PRÁTICA DA CARIDADE

Com o passar dos anos e a progressiva difusão da Igreja, a prática da caridade confirmou-se como um dos seus âmbitos essenciais, juntamente com a administração dos Sacramentos e o anúncio da Palavra: praticar o amor para com as viúvas e os órfãos, os presos, os doentes e necessitados de qualquer gênero pertence tanto à sua essência como o serviço dos Sacramentos e o anúncio do Evangelho. A Igreja não pode descuidar do serviço da caridade, tal como não pode negligenciar os Sacramentos nem a Palavra(....)

(...) A natureza íntima da Igreja exprime-se num tríplice dever: anúncio da Palavra de Deus (kerygma-martyria), celebração dos Sacramentos (liturgia), serviço da caridade (diakonia). São deveres que se reclamam mutuamente, não podendo um ser separado dos outros. Para a Igreja, a caridade não é uma espécie de atividade de assistência social que se poderia mesmo deixar a outros, mas pertence à sua natureza, é expressão irrenunciável da sua própria essência.

A Igreja é a família de Deus no mundo. Nesta família, não deve haver ninguém que sofra por falta do necessário. Ao mesmo tempo, porém, a caritas-ágape estende-se para além das fronteiras da Igreja; a parábola do bom Samaritano permanece como critério de medida, impondo a universalidade do amor que se inclina para o necessitado encontrado "por acaso" (cf. Lc 10, 31), seja ele quem for. Mas, ressalvada esta universalidade do mandamento do amor, existe também uma exigência especificamente eclesial - precisamente a exigência de que, na própria Igreja enquanto família, nenhum membro sofra porque passa necessidade. Neste sentido se pronuncia a Carta aos Gálatas: "Portanto, enquanto temos tempo, pratiquemos o bem para com todos, mas principalmente para com os irmãos na fé" (6, 10).

JUSTIÇA, POLÍTICA E CARIDADE

Desde o Oitocentos, vemos levantar-se contra a atividade caritativa da Igreja uma objeção, explanada depois com insistência sobretudo pelo pensamento marxista. Os pobres - diz-se - não teriam necessidade de obras de caridade, mas de justiça. As obras de caridade - as esmolas - seriam na realidade, para os ricos, uma forma de subtraírem-se à instauração da justiça e tranqüilizarem a consciência, mantendo as suas posições e defraudando os pobres nos seus direitos. Em vez de contribuir com as diversas obras de caridade para a manutenção das condições existentes, seria necessário criar uma ordem justa, na qual todos receberiam a sua respectiva parte de bens da terra e, por conseguinte, já não teriam necessidade das obras de caridade. Algo de verdade existe - devemos reconhecê-lo - nesta argumentação, mas há também, e não pouco, de errado (...)

(... ) A justa ordem da sociedade e do Estado é dever central da política. Um Estado, que não se regesse segundo a justiça, reduzir-se-ia a uma grande banda de ladrões, como disse Agostinho uma vez: "Remota itaque iustitia quid sunt regna nisi magna latrocinia?". Pertence à estrutura fundamental do cristianismo a distinção entre o que é de César e o que é de Deus (cf. Mt 22, 21), isto é, a distinção entre Estado e Igreja ou, como diz o Concílio Vaticano II, a autonomia das realidades temporais. O Estado não pode impor a religião, mas deve garantir a liberdade da mesma e a paz entre os aderentes das diversas religiões; por sua vez, a Igreja como expressão social da fé cristã tem a sua independência e vive, assente na fé, a sua forma comunitária, que o Estado deve respeitar. As duas esferas são distintas, mas sempre em recíproca relação (...)

O Estado defronta-se inevitavelmente com a questão: como realizar a justiça aqui e agora? Mas esta pergunta pressupõe outra mais radical: o que é a justiça? Isto é um problema que diz respeito à razão prática; mas, para poder operar retamente, a razão deve ser continuamente purificada porque a sua cegueira ética, derivada da prevalência do interesse e do poder que a deslumbram, é um perigo nunca totalmente eliminado. Neste ponto, política e fé tocam-se (...)

(...) A doutrina social da Igreja discorre a partir da razão e do direito natural, isto é, a partir daquilo que é conforme à natureza de todo o ser humano. (...) A construção de um ordenamento social e estatal justo, pelo qual seja dado a cada um o que lhe compete, é um dever fundamental que deve enfrentar de novo cada geração. Tratando-se de uma tarefa política, não pode ser encargo imediato da Igreja. Mas, como ao mesmo tempo é uma tarefa humana primária, a Igreja tem o dever de oferecer, por meio da purificação da razão e através da formação ética, a sua contribuição específica para que as exigências da justiça se tornem compreensíveis e politicamente realizáveis.

A Igreja não pode nem deve tomar nas suas próprias mãos a batalha política para realizar a sociedade mais justa possível. Não pode nem deve colocar-se no lugar do Estado. Mas também não pode nem deve ficar à margem na luta pela justiça. Deve inserir-se nela pela via da argumentação racional e deve despertar as forças espirituais, sem as quais a justiça, que sempre requer renúncias também, não poderá afirmar-se nem prosperar. A sociedade justa não pode ser obra da Igreja; deve ser realizada pela política. Mas toca à Igreja, e profundamente, o empenhar-se pela justiça trabalhando para a abertura da inteligência e da vontade às exigências do bem.

O amor - caritas - será sempre necessário, mesmo na sociedade mais justa. Não há qualquer ordenamento estatal justo que possa tornar supérfluo o serviço do amor. Quem quer desfazer-se do amor, prepara-se para se desfazer do homem enquanto homem. Sempre haverá sofrimento que necessita de consolação e ajuda. Haverá sempre solidão (...) Não precisamos de um Estado que regule e domine tudo, mas de um Estado que generosamente reconheça e apóie, segundo o princípio de subsidiariedade, as iniciativas que nascem das diversas forças sociais e conjugam espontaneidade e proximidade aos homens carecidos de ajuda. A Igreja é uma destas forças vivas: nela pulsa a dinâmica do amor suscitado pelo Espírito de Cristo. Este amor não oferece aos homens apenas uma ajuda material, mas também refrigério e cuidado para a alma - ajuda esta muitas vezes mais necessária que o apoio material (...)

MARXISMO

A atividade caritativa cristã deve ser independente de partidos e ideologias. Não é um meio para mudar o mundo de maneira ideológica, nem está ao serviço de estratégias mundanas, mas é atualização aqui e agora daquele amor de que o homem sempre tem necessidade. O tempo moderno, sobretudo a partir do Oitocentos, aparece dominado por diversas variantes duma filosofia do progresso, cuja forma mais radical é o marxismo. Uma parte da estratégia marxista é a teoria do empobrecimento: esta defende que, numa situação de poder injusto, quem ajuda o homem com iniciativas de caridade, coloca-se de fato ao serviço daquele sistema de injustiça, fazendo-o resultar, pelo menos até certo ponto, suportável. Deste modo fica refreado o potencial revolucionário e, conseqüentemente, bloqueada a reviravolta para um mundo melhor. Por isso, se contesta e ataca a caridade como sistema de conservação do status quo. Na realidade, esta é uma filosofia desumana.

O homem que vive no presente é sacrificado ao moloch do futuro - um futuro cuja efetiva realização permanece pelo menos duvidosa. Na verdade, a humanização do mundo não pode ser promovida renunciando, de momento, a comportar-se de modo humano. Só se contribui para um mundo melhor, fazendo o bem agora e pessoalmente, com paixão e em todo o lado onde for possível, independentemente de estratégias e programas de partido. O programa do cristão - o programa do bom Samaritano, o programa de Jesus - é "um coração que vê". Este coração vê onde há necessidade de amor, e atua em conseqüência (...)

(...) A caridade não deve ser um meio em função daquilo que hoje é indicado como proselitismo. O amor é gratuito; não é realizado para alcançar outros fins. Isto, porém, não significa que a ação caritativa deva, por assim dizer, deixar Deus e Cristo de lado. Sempre está em jogo o homem todo. Muitas vezes é precisamente a ausência de Deus a raiz mais profunda do sofrimento (...)

A GRAÇA DE AJUDAR

(...) Cristo ocupou o último lugar no mundo - a cruz - e, precisamente com esta humildade radical, nos redimiu e ajuda sem cessar. Quem se acha em condições de ajudar há de reconhecer que, precisamente deste modo, é ajudado ele próprio também; não é mérito seu nem título de glória o fato de poder ajudar. Esta tarefa é graça. Quanto mais alguém trabalhar pelos outros, tanto melhor compreenderá e assumirá como própria esta palavra de Cristo: "Somos servos inúteis" (Lc 17, 10). Na realidade, ele reconhece que age, não em virtude de uma superioridade ou uma maior eficiência pessoal, mas porque o Senhor lhe concedeu este dom. Às vezes, a excessiva vastidão das necessidades e as limitações do próprio agir poderão expô-lo à tentação do desânimo. Mas é precisamente então que lhe serve de ajuda saber que, em última instância, ele não passa de um instrumento nas mãos do Senhor; libertar-se-á assim da presunção de dever realizar, pessoalmente e sozinho, o necessário melhoramento do mundo. Com humildade, fará o que lhe for possível realizar e, com humildade, confiará o resto ao Senhor (...)

A experiência da incomensurabilidade das necessidades pode, por um lado, fazer-nos cair na ideologia que pretende realizar agora aquilo que o governo do mundo por parte de Deus, pelo visto, não consegue: a solução universal de todo o problema. Por outro lado, aquela pode tornar-se uma tentação para a inércia a partir da impressão de que, seja como for, nunca se levaria nada a termo. Nesta situação, o contato vivo com Cristo é a ajuda decisiva para prosseguir pela justa estrada: nem cair numa soberba que despreza o homem e, na realidade, nada constrói, antes até destrói; nem abandonar-se à resignação que impediria de deixar-se guiar pelo amor e, deste modo, servir o homem (...)

(...) É certo que Job pôde lamentar-se com Deus pelo sofrimento, incompreensível e aparentemente injustificado, presente no mundo. Assim se exprime ele na sua dor: "Oh! Se pudesse encontrá-Lo e chegar até ao seu próprio trono! (...) Saberia o que Ele iria responder-me e ouviria o que Ele teria para me dizer. Oporia Ele contra mim o seu grande poder? (...) Por isso, a sua presença me atemoriza; contemplo-O e tremo diante d'Ele. Deus enervou o meu coração, o Omnipotente encheu-me de terror" (23, 3.5-6. 15-16). (...) Santo Agostinho dá a este nosso sofrimento a resposta da fé: "Se O compreendesses, não seria Deus". (...) Apesar de estarem imersos como os outros homens na complexidade dramática das vicissitudes da história, eles permanecem inabaláveis na certeza de que Deus é Pai e nos ama, ainda que o seu silêncio seja incompreensível para nós (...)

CONCLUSÃO

Por fim, olhemos os Santos, aqueles que praticaram de forma exemplar a caridade. Penso, de modo especial, em Martinho de Tours ( 397), primeiro soldado, depois monge e Bispo: como se fosse um ícone, ele mostra o valor insubstituível do testemunho individual da caridade. Às portas de Amiens, Martinho partilhara metade do seu manto com um pobre; durante a noite, aparece-lhe num sonho o próprio Jesus trazendo vestido aquele manto, para confirmar a perene validade da sentença evangélica: "Estava nu e destes-Me de vestir (...). Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes" (Mt 25, 36.40) (...)