Título: O amor e a caridade, por Bento XVI
Autor: Ricardo Westin
Fonte: O Estado de São Paulo, 26/01/2006, Vida&, p. A13

Cidade do Vaticano - Na primeira encíclica de seu pontificado, o papa Bento XVI rebate as críticas de que a Igreja teria dificuldade para lidar com a sexualidade. Ele descreve o "êxtase" do amor físico entre homem e mulher como algo que leva ao amor divino de Deus. Em vez de diretrizes para a Igreja, a encíclica propõe reflexões.

No início do documento, que, em português tem 16.135 palavras, a autoridade máxima dos católicos cita Friedrich Nietzsche - "esse filósofo alemão exprimia assim uma sensação muito generalizada: com os seus mandamentos e proibições, a Igreja não nos torna porventura amarga a coisa mais bela da vida?" - para logo depois esclarecer que o cristianismo não rejeita o "eros". Tenta "saná-lo" para que alcance sua verdadeira grandeza. "O 'eros' degradado em puro sexo se transforma em mercadoria, em simples objeto que se pode comprar e vender. O homem se transforma em mercadoria", alerta o papa.

Com o título Deus Caritas Est (Deus É Amor), as mais de 70 páginas da encíclica foram divulgadas ontem, nove meses depois da eleição de Bento XVI. Elas foram escritas em alemão, a língua materna do papa, em meados do ano passado e traduzidas para sete idiomas, incluindo o português.

A nova encíclica não traz orientações - ao contrário da Humanae Vitae, escrita por Paulo VI em 1968, por exemplo, que condenava a pílula anticoncepcional. Traz o amor e a caridade como temas para reflexão e é dividida em duas partes.

Na primeira, Bento XVI faz uma reflexão teológico-filosófica sobre o amor em suas diferentes dimensões. distingue "eros" (amor carnal) de "philia" (amor da amizade) e "ágape" (amor entre irmãos, a concepção bíblica do amor, mas também usada para expressar uma refeição, um encontro de confraternização). Na segunda parte, o papa discorre sobre a aplicação concreta da lei "Amarás o teu próximo como a ti mesmo". Segundo ele, a caridade é algo que faz parte da natureza dos católicos, "expressão irrenunciável de sua própria existência".

O texto tem a data de 25 de dezembro, dia em que a encíclica deveria ter sido divulgada. Na semana passada, Bento XVI disse que o atraso ocorreu por problemas na tradução. Segundo fontes do Vaticano, porém, o papa teria tido dificuldades para fundir os dois temas - amor e caridade - na encíclica. Acabou deixando os assuntos separados.

POLÍTICA E MARXISMO

A encíclica Deus Caritas Est é importante porque define o tom do atual pontificado. Apesar de se concentrar no amor, o documento também faz referências à política e à relação entre a Igreja e o Estado. O papa Bento XVI afirma, por exemplo, que a Igreja não pode nem deve substituir o Estado na busca por justiça.

Apesar disso, afirma ele, "a Igreja também não pode nem deve ficar à margem na luta pela justiça". O necessário não é um Estado que regule e domine tudo, mas que generosamente reconheça e apóie as diferentes iniciativas que surgem na sociedade. "Uma delas é a Igreja", continua.

Bento XVI também faz referências ao marxismo. Perante o binômio justiça e caridade, o papa lembra que desde o século 19 têm havido objeções sobre a atividade caridosa da Igreja e que o marxismo dizia que os pobres não precisavam de obras de caridade, mas de justiça. Bento XVI reconhece que "há algo de verdade" nessa afirmação, mas diz que também há "diversos erros".

"Dizia-se que, mediante a revolução e a coletivização dos meios de produção, tudo melhoraria repentinamente. Mas esse sonho se desvaneceu e na difícil situação na qual estamos hoje por causa da globalização da economia, a doutrina social da Igreja se transformou numa indicação fundamental para aqueles que se preocupam seriamente com o homem e seu mundo", ressalta.

AVALIAÇÃO

O filósofo Luiz Felipe Pondé, professor de Ciências da Religião e de Teologia na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), entende que as referências ao marxismo como um recado àqueles que ainda se influenciam pela Teologia da Libertação - combatida por Bento XVI desde os tempos de cardeal. "O papa deixa claro que o namoro entre a Igreja e o marxismo acabou. E os padres que ainda não entenderam isso podem ter problemas."

O também professor de Teologia da PUC-SP Fernando Altemeyer Júnior chama a atenção para o fato de que pela primeira vez um papa encarou as críticas à Igreja. "Bento XVI citou Nietzsche, abordou Marx e, ao citar 'eros', conversou indiretamente com Freud. O papa foi corajoso ao tomar essa atitude, ao enfrentar a crítica", disse.

O teólogo, porém, aponta problemas no texto. O pontífice critica o marxismo, mas não faz referência aos EUA. "Não fala do império americano, que é a pedra no sapato da justiça social no mundo. Ele cita o antigo comunismo e suas reminiscências, mas não cita o capitalismo e o neoliberalismo."

Ele também chama a atenção para os santos que o papa enumera no final da encíclica. Entre eles - citados como modelos de caridade -, estão Francisco de Assis, Inácio de Loyola, Vicente de Paulo e Teresa de Calcutá. "São todos europeus. Não há nenhum santo nascido na América, na África ou na Ásia? Além disso, a madre Teresa não é santa." Teresa de Calcutá, nascida na Europa, é beata.

Um dos aspectos positivos, segundo Altemeyer, é o fato de a nova encíclica ser bem mais clara e objetiva que as de outros papas. "É até poética."