Título: O papel dos EUA no caos haitiano
Autor: Wald Bogdanich e Jenny Norderberg
Fonte: O Estado de São Paulo, 30/01/2006, Internacional, p. A18

Quando seu avião levantou vôo da pista aqui em agosto de 2003, Brian Dean Curran lembrou-se de que havia vindo para cá na esperança de ajudar a tênue democracia do Haiti a crescer. Agora, estava partindo com raiva e mau agouro.

Sete meses depois, rebeldes armados derrubaram o presidente Jean-Bertrand Aristide. O Haiti, que nunca foi um modelo de estabilidade, logo se dissolveu num Estado tão sem lei que deixou pasmos mesmo aqueles que pressionaram pela deposição de Aristide, um ex-padre católico que subiu ao poder como defensor e herói dos pobres do Haiti.

Hoje, a capital, Porto Príncipe, está virtualmente paralisada por seqüestros, que disseminam o pânico entre ricos e pobres. Policiais corruptos têm assassinado pessoas nas ruas em plena luz do dia. O caos é tão extremo e o governo interino tão deficiente que a votação para eleger um novo governo já foi adiada quatro vezes. A última data é 7 de fevereiro.

Mas, mesmo no momento em que o Haiti se prepara para escolher seu primeiro presidente eleito desde a rebelião de dois anos atrás, pairam no ar questões sobre as circunstâncias da derrubada de Aristide, e especialmente por que o governo Bush, que tem feito da construção da democracia uma peça central da sua política externa no Iraque e em outras partes do mundo, não fez mais para preservá-la num país tão próximo das costas dos Estados Unidos.

O governo Bush tem dito que, embora Aristide fosse profundamente deficiente, sua política sempre foi a de trabalhar em conjunto com ele como o líder democraticamente eleito do Haiti.

Mas as ações no Haiti nem sempre estiveram em conformidade com suas palavras. Entrevistas e análises de documentos do governo mostram que uma entidade de construção da democracia ligada à Casa Branca e financiada pelos contribuintes americanos prejudicou a política oficial dos EUA e o embaixador designado para executá-la.

Como resultado, às vezes, os EUA falaram com vozes contraditórias num país onde suas palavras têm enorme peso. Essa mensagem contraditória, disse Brian Curran, o ex-embaixador americano, tornaram as tentativas de promover a paz política "muitíssimo mais difíceis".

Curran acusou o grupo de construção da democracia, o International Republican Institute (IRI, Instituto Republicano Internacional), de tentar arruinar o processo de conciliação depois que as disputadas eleições para o Senado de 2000 lançaram o Haiti numa violenta crise política. O líder da organização no Haiti, Stanley Lucas, um opositor confesso de Aristide oriundo da elite haitiana, aconselhou a oposição a permanecer firme e trabalhar com Aristide, como uma forma de atrapalhar seu governo e expulsá-lo do poder, disse Curran, cujo relato é confirmado por outros diplomatas e personalidades da oposição.

Curran, um veterano de 30 anos no Serviço de Relações Exteriores, também acusa Lucas de dizer à oposição que ele (Lucas) e não o embaixador representavam as verdadeiras intenções do governo Bush.

Os documentos mostram que Curran avisou seus superiores em Washington de que o comportamento de Lucas era contrário à política americana. Porém, quando ele pediu um controle mais rigoroso sobre o IRI, em 2002, bateu de encontro com uma forte barreira, pois autoridades do Departamento de Estado e do Conselho de Segurança Nacional manifestaram seu apoio à entidade pró-democracia, escreveu um assessor americano.

O IRI é uma das várias organizações sem fins lucrativos que recebem fundos federais para ajudar países a desenvolver os mecanismos da democracia, como fazer campanha e monitorar uma eleição. Mas de todos esses grupos, o IRI é o mais próximo do governo. Bush escolheu seu presidente, Lorne W. Craner, para tocar os esforços da administração de construir uma democracia. O instituto, que funciona em mais de 60 países, viu seu financiamento federal quase triplicar em três anos, de US$ 26 milhões em 2003 para US$ 75 milhões em 2005.

Esses grupo caminham sobre uma linha fina. Segundo as diretrizes federais, eles devem promover a democracia de uma forma não partidária. Mas no Haiti, segundo os diplomatas, Lucas trabalhou ativamente contra Aristide.

Colin Powell, o secretário de Estado na época, disse que a política americana no Haiti era aquela que Curran acreditava ser e que os EUA apoiariam Aristide até o último dia da sua presidência.

Mas numa entrevista recente, Otto Reich, que serviu sob o comando de Powell como autoridade de primeiro escalão do Departamento de Estado na América Latina, disse que houve uma sutil mudança na política para longe de Aristide depois que Bush se tornou presidente - como Curran e outros tinham desconfiado.

O IRI não permitiu que o New York Times entrevistasse Lucas, mas respondendo perguntas por escrito, ele negou ter tentado arruinar a política americana. Georges A. Fauriol, vice-presidente da IRI, disse que seu grupo tentou representar fielmente "os ideais do sistema democrático americano" e ele pessoalmente pressionou a oposição para fazer concessões. Fauriol culpou "insinuações e interesses político" pelas reclamações de Curran e de outros. Disse também que Curran nunca lhe deu justificativas específicas de que ele precisava agir contra Lucas.

No Haiti, as atividades partidárias de Lucas eram bem conhecidas. Jean-Max Bellerive, um funcionário de três governos haitianos, incluindo o de Aristide, declarou: "Ele disse que havia um grande plano para o Haiti que vinha de Washington, que Aristide não terminaria seu mandato." Bellerive acrescentou: "Ele me disse que Curran não tinha importância, que ele não se encaixava no quadro geral."

Com a aprovação de Washington, Lucas usou o dinheiro dos contribuintes para levar centenas de membros da oposição - e nenhum do partido Lavalas de Aristide - para um hotel na República Dominicana para treinamento político que começou no final de 2002.

Curran saiu do Haiti em agosto de 2003 para atender a uma nova atribuição e no mês seguinte os opositores políticos de Aristide decidiram que não fazia muito sentido negociar. Ainda assim, houve uma última esperança. Luigi Einaudi, um respeitado diplomata que liderou a tentativa internacional de encontrar um acordo político em nome da Organização dos Estados Americanos, convenceu alguns líderes da oposição a se reunirem com Aristide na casa do novo embaixador dos EUA, James Foley. Mas, segundo Einaudi, as autoridades americanas "puxaram abruptamente o tapete", cancelando a reunião sem consultá-lo.

Vários meses depois, os rebeldes marcharam para Porto Príncipe e Aristide deixou o Haiti num avião providenciado pelo governo americano. Desde então, o Haiti se tornou ainda mais caótico.

Curran começou a cumprir sua tarefa no início de 2001. Ele disse que queria acreditar em Aristide mas, que, gradualmente, se desiludiu. "Tive muitas conversas com ele sobre a polícia e as violações dos direitos humanos", disse Curran. "E, no final, ele me desapontou."

Mesmo assim, segundo Curran, sua missão era clara."A promoção da democracia estava no âmago do que eu estava fazendo no Haiti", disse ele. Estava claro também como se comportar: apoiar o direito de Aristide ocupar o cargo ao mesmo tempo em que trabalhava para obter uma solução conciliatória. "Essa era a política declarada oficialmente", afirmou Curran.

Curran deveria ter tido a ajuda do IRI, que estava atuando no Haiti desde 1990. Com o Instituto Nacional Democrático, o IRI foi formado no início da década de 80 depois que o presidente Ronald Reagan convocou os americanos a combater o totalitarismo. Seu conselho inclui pesos pesados e lobistas da política externa republicana e o presidente do seu conselho é o senador John McCain, republicano do Arizona, que não respondeu aos pedidos para uma entrevista. A entidade é financiada pela Agency for International Development, assim como pelo Departamento de Estado, fundações e empresas como a Halliburton e a Chevron.

No início de 2002, disse Curran, ele começou a receber relatórios problemáticos sobre Lucas. Enquanto ele pressionava a oposição do Haiti "a mostrar flexibilidade", Lucas estava enviando instruções contrárias: "Fiquem firmes. Não façam concessões. No final, nos livraremos de Aristide".

Quando suas preocupações aumentaram, Curran pediu que Lucas fosse retirado do programa do IRI no Haiti. Mas o instituto resistiu."Lucas era da opinião que negociar seria uma má idéia e eu da opinião que devíamos ter negociado para mostrar nossa boa fé", disse Evans Paul, ex-prefeito de Porto Príncipe e agora candidato à presidência, que no entanto elogiou o apoio de Lucas à posição contra Aristide.

Com o IRI respaldando Lucas, Curran reclamou a seus superiores em Washington, por meio de telegramas, mensagens por e-mail e em reuniões.

Além de Otto Reich, então assistente do secretário de Estados para assuntos latino-americanos, esse grupo incluía Elliott Abrams, um assistente especial do presidente e diretor sênior para democracia e direitos humanos e também Daniel W. Fisk, um vice de Reich.

Na década de 1980, Reich e Abrams se enredaram em investigações sobre as atividades do governo Reagan que se opunham ao governo socialista da Nicarágua. Em 1987, o controlador-geral determinou que um escritório de diplomacia público chefiado por Reich, que é cubano de nascimento, tinha se engajado em atividades de propaganda política clandestinas e proibida. Em 1991, Abrams declarou-se culpado de reter informações do Congresso relacionados ao caso Irã-Contras. Ele foi perdoado pelo primeiro presidente Bush.

Agora, com o segundo governo Bush, Reich, Abrams e colegas estavam de volta ao poder. A era Clinton, achavam eles, fora ruim para os interesses dos EUA na América Latina. "Os EUA malbarataram boa parte da sua credibilidade apoiando Aristide durante a era Clinton", disse Roger Noriega, que substituiu Reich no Departamento de Estado em 2003.

Os documentos mostram que, no verão de 2002, Curran procurou um controle mais rigoroso sobre o IRI. As autoridades de Washington se opuseram à solicitação de Curran. Não apenas havia pressão do Congresso, "mas também havia membros do alto escalão do Departamento de Estado que eram solidários à posição do IRI".

Curran defendeu várias concessões sugeridas por Reich, incluindo que Lucas fosse proibido de participar do programa durante 120 dias e seria despedido do programa do IRI no Haiti se se comportasse mal, mostram os registros.

Em dezembro de 2002, o IRI começou a treinar os partidos políticos haitianos no Hotel Santo Domingo, na República Dominicana. Só os opositores de Aristide, não os integrantes de seu partido, foram convidados.

Bazin, um opositor moderado de Aristide, mandou representantes para o hotel. Eles foram embora com a crença de que havia mais em jogo do que treinamento político de rotina.

"Os informes que obtive foi que havia duas reuniões - reuniões abertas, onde a democracia seria discutida, e reuniões fechadas, em que outras coisas seriam discutidas - e não fomos convidados para as outras reuniões", disse Bazin, que agora é candidato à presidência por uma facção do Lavalas, o partido de Aristide.

Bazin disse que as pessoas que foram às reuniões fechadas disseram-lhe que "há coisas que você não sabe" - que Aristide seria removido definitivamente.

Depois, disse ele, falou com Curran. "Perguntei-lhe: 'Quantas políticas eles têm nos EUA?'", disse Bazin.

Lucas disse que os comentários de Bazin deveriam ser vistos à luz de sua aliança com alguns ex-defensores de Aristide. E Fauriol negou que reuniões secretas aconteceram. Mas ao comparecer à primeira sessão de treinamento, Lucas violou a proibição de 120 dias.

Curran mandou uma mensagem a Washington, pedindo que o programa do IRI fosse cancelado ou Lucas demitido. Nada aconteceu.

Acontece que havia mais uma coisa, algo que funcionários do governo aparentemente não sabiam: dois líderes dos rebeldes armados disseram ao New York Times que estavam no Hotel Santo Domingo enquanto realizavam o treinamento. Guy Philippe, ex-comandante policial que foi para o Haiti após duas tentativas de golpe fracassadas, disse em uma entrevista que havia visto Lucas no hotel. Paul Arcelin, arquiteto da rebelião, disse que ele também havia visto Lucas no hotel durante as sessões de treinamento.

Os seminários ainda estavam acontecendo em setembro de 2003 quando o governo Bush mandou um novo embaixador para o Haiti. Reich disse que Curran ia ser substituído porque "não achamos que o embaixador estava levando à cabo a nova política da maneira que queríamos".

No outono de 2003, na fronteira dominicana, os rebeldes esperaram pelo momento certo para atacar. Durante quatro anos, Einaudi, ex-secretário-geral da OEA, fez cerca de 30 viagens para o Haiti tentando evitar esse momento. Mesmo assim, falhou. Aristide finalmente estava disposto a dividir o poder, disse Einaudi, mas a oposição, fortalecida, não viu necessidade de negociar com ele.

Com pouco tempo de sobra, Einaudi tentou uma nova abordagem e convidou Aristide e seu opositor para um encontro na casa do novo embaixador americano. Mas em um lance que surpreendeu Einaudi, os EUA cancelaram a reunião.

Noriega, que havia substituído Reich no Departamento de Estado, disse em uma entrevista que o governo cancelou a reunião após falar com os opositores de Aristide. Ia ser "um fracasso para nós e um golpe na nossa credibilidade", disse ele.

Vários meses mais tarde, os rebeldes foram para o Haiti e começaram uma investida final. Quando Aristide pediu tropas internacionais, não conseguiu. No dia 29 de fevereiro, os EUA mandaram Aristide para o exílio na África do Sul.

Quase imediatamente, os congressistas democratas e a Caricom, a associação de nações caribenhas, pediram um inquérito independente sobre a deposição de Aristide e porque os vizinhos do Haiti não vieram em sua ajuda. O Departamento de Estado disse que não havia nada para investigar.

Dois anos mais tarde, não houve inquérito.E as perguntas sobre a queda de Aristide continuam sem resposta. Entre elas está o que o governo Bush sabia sobre os rebeldes, que conspiraram na República Dominicana, um país amigo dos EUA.

Desde a deposição de Aristide, os bandos de seqüestradores famintos por resgates criaram uma guerra cada vez maior na capital. As forças de segurança locais e internacionais são superadas pela proliferação de armas. Os EUA, que mandaram tropas para ajudar a estabilizar o país imediatamente após a deposição de Aristide, as retiraram vários meses depois.

Em 24 de janeiro, um porta-voz do Departamento de Estado, Sean McComack, disse que as forças da ONU "estão fazendo um bom trabalho". E acrescentou: "Não concordo com essa idéia de que os EUA não estavam profundamente envolvidos." As atividades do IRI no Haiti não incluem mais Lucas. Ele agora trabalha para o programa do Afeganistão do grupo. Curran deixou o Serviço Externo e está trabalhando para a Otan.