Título: Colaborador na devastação
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 30/01/2006, Espaço Aberto, p. A3

A devastação da Amazônia, que assusta o mundo, ameaça indiretamente a soberania brasileira na região e, pior do que tudo, compromete um grande patrimônio ambiental das futuras gerações, está tendo a "colaboração" de um sistema falido de cobrança pública, que assegura aos infratores ambientais a mais tranqüila impunidade. Os dados extraídos de um levantamento feito pelo Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) - expostos na edição de quarta-feira do Estado - são, realmente, de estarrecer. A análise de 55 processos por infrações florestais, envolvendo desmatamento e comércio ilegal de madeiras, iniciados no Pará entre 1999 e 2003, após a regulamentação da rigorosa Lei de Crimes Ambientais, concluiu que, de um total de quase R$ 1,5 milhão em multas, apenas R$ 45 mil - ou seja, 3% - haviam sido arrecadados até 2004. Até esse ano, em 74% dos processos havia condenações e não-pagamento, o que correspondia a 78% do valor total das multas - sendo que os casos pagos correspondiam a 15% dos processos (e a 3% das multas). Ocorre que, em toda a Amazônia, a média de arrecadação de multas entre 2001 e 2004 foi ainda mais irrisória, chegando ao porcentual ínfimo de 2,1%!

Inúmeras foram as causas apontadas para esse descalabro. Preenchimento incorreto de autos de infração, às vezes com omissão do CPF do multado ou cálculo errado da quantidade de produto ilegal transportado - no caso da madeira extraída irregularmente - em razão do despreparo de pessoal ou da corrupção; impossibilidade de cobrar multas (ou qualquer coisa) de "laranjas" sem documentos, colocados nas áreas devastadas para assumir a responsabilidade pelos desmatamentos, perante o Ibama; impossibilidade de encontrar os infratores por mudanças de endereço, facilitadas pela longa duração dos processos - a duração média dos processos administrativos do Ibama no Pará foi de 806 dias úteis (!), morosidade que continuou na Justiça, que em 62% dos casos não conseguiu localizar os acusados para dar seguimento aos processos -; falta de homologação do auto de infração pelo gerente-executivo do Ibama; e outros entraves burocráticos semelhantes. Isso só pode ser atribuído a um conjunto de fatores que, na administração pública, sempre estimulam a impunidade, a saber: desaparelhamento técnico, falta de pessoal, negligência e corrupção propriamente dita.

Considerando-se que a finalidade da imposição de multas não é o aumento de arrecadação do Estado, mas sim a eficácia intimidativa, no desestímulo à devastação do meio ambiente e destruição de ecossistemas, não se trata de referir apenas à grande quantidade de dinheiro que deixa de chegar aos cofres públicos, por essa aberrante incapacidade de cobrança. Trata-se, sim, de medir o grande estrago que essa sistemática impunidade causa ao insubstituível patrimônio ambiental amazônico, sem paralelo no mundo. Veja-se que, ao mesmo tempo que as multas aplicadas na Amazônia saltaram de R$ 218 milhões para R$ 611 milhões, entre 2001 e 2004, o desmatamento anual na região aumentou de 18.165 quilômetros quadrados para 27.200 quilômetros quadrados. De que adianta, então, esse verdadeiro simulacro de punição, baseado em legislação reconhecidamente rigorosa (e em alguns tópicos até exagerada), que não resulta em coisa alguma, apenas estimula o sentimento de impunidade dos infratores?

É claro que essa impunidade só pode resultar em desânimo de todos aqueles funcionários encarregados da fiscalização ambiental, que pretendem cumprir corretamente suas funções - em circunstâncias especialmente difíceis, como as da floresta amazônica - e fazer o que lhes determina a lei. Diga-se o mesmo em relação aos membros do Ministério Público e do próprio Judiciário, que devem se sentir por demais frustrados se se sensibilizarem com a necessidade de preservar inestimável riqueza para nossos pósteros. Diga-se, finalmente, que as leis rigorosas não cumpridas podem ser piores do que as inexistentes, se acalentam a falsa idéia de que se faz o que era para ser feito: pois é por esse engodo que não se fará, mesmo. No caso, a preservação da Amazônia.